Leituras de cinema

Há muito tempo já se disse que o cinema é a arte de escrever com a luz. Se é verdade, então os quadros são palavras, os planos são frases, as cenas são parágrafos e as sequências, capítulos que compõem o todo da obra. O filme é um livro de imagens em movimento, arremessadas diante de nós num ritmo determinado por outro. O que será dessas imagens em nossa cabeça? Já vem acabadas, prontas para serem digeridas? Qual o nosso papel diante delas? À maneira que somos alfabetizados para lidar com as palavras, frases, somos também educados para entender as imagens? Essa gramática, que organiza o movimento delas, que as agrupa, que as combina para gerar um tanto de sensações nos é ensinada? Com quem aprendemos a ler um filme?




A maioria das pessoas que “consomem” cinema não se faz essas perguntas. Ao menos não explicitamente. É fato que ver um filme pode ser realmente um mero hobby, ou até escapismo. Que tal fugir um pouco da realidade no escuro da sala de cinema, ou na sala de casa mesmo, como é mais comum? É verdade que o filme hoje está em todas as telas, ou seja, em todos os lugares. Fonte de prazer e diversão, um filme pode ser reduzido a meras duas horas de ocupação, sem nada impactar as mentes daquelas mais despretensiosas plateias. Será? Haverá aqueles que defenderão o relativismo ou subjetividade de tal problema. Dirão que depende do filme e do contexto onde será visto. É fato que um filme pode ser transformado em objeto de estudo, pode ter sido elaborado para causar algum tipo de sensação intelectiva específica, ou nada mais que uma peça comercial a fim de obter lucro no mercado das salas multiplex. Sem dúvida, tudo isso é possível.

Todavia, ninguém discordará que os filmes são vistos por centenas de milhões de pessoas, e que, de formas mais ou menos despretensiosas, transmitem ideias, valores, contam história e documentam a história. Aprender a ler essas imagens me parece ser uma atitude, no mínimo, prudente. Pensando na educação, enquanto aparelho de estado, eu diria ser irresponsável fingir que as imagens não estão presentes em cada canto, é melhor dizer em cada tela mesmo. Gosto de afirmar que uma imagem produzida é uma narrativa. Por si só, já é algo complexo, que exige uma decifração, uma decodificação, que na maioria das vezes, somos forçados a aprender no front de batalha (de narrativas).

Por isso, ao lado do já conhecido termo letramento imagético, venho aqui propor o letramento fílmico. Esse site é apenas uma pequena, eu diria ínfima, contribuição nesse sentido. Como já foi exposto no texto de apresentação, nosso intuito é pensar a representação da noção de tempo e temporalidade nos filmes. No entanto, penso que se queremos aprender com os filmes, e principalmente aprender a partir dos filmes, temos que aprender a lê-los. Ou seja, aprender a aprender com eles. Pensá-lo para que ele nos ajude a pensar.

Enfim, essa seção do site “O tempo no cinema” terá como missão convidar o leitor a mergulhar mais a fundo na sétima arte. Minha esperança é que possamos mobilizar uma reflexão a respeito da importância de nos prepararmos para lidar com o audiovisual como ferramenta de aprendizagem. E como o site tem como público-alvo profissionais do ensino que operam principalmente com o conhecimento das Ciências Humanas, procurarei direcionar boa parte do conteúdo nesse sentido. Basicamente, vejo essa parte do site como um complemento importante das outras. Ao lado das dicas de filmes, em que vou tratar de tempo e temporalidade nas obras através de resenhas, este espaço será destinado a sugestão de leituras de livros sobre cinema. Porém, seguirei uma pequena classificação que ora esclareço.

Confesso que demorei um pouco a admitir que, embora a minha pesquisa investigue a relação entre cinema, história e ensino de história, em especial a compreensão das noções de tempo e temporalidade na aprendizagem histórica por meio dos filmes, uma formação mais abrangente sobre teoria e produção de cinema é imprescindível. Pois, como deverão admitir os professores que estiverem lendo este texto, não é possível exibir um filme para os alunos sem que o mesmo antes tenha sido devidamente conhecido, decupado, e apropriado enquanto ferramenta didático-pedagógica. Para isso, não basta observar sobre o que o filme trata, o que expõe diretamente na tela. E mesmo aquilo que é exibido guarda nuances que precisam de olhos com certo treinamento, e um pouco de orientação teórica nesse sentido é muito bem-vinda. Por isso, serão aqui resenhados posteriormente alguns livros que tratam de linguagem dos filmes, de sua gramática visual, que nos ajudam a entender a forma o e estilo da chamada sétima arte. Pois, aspectos como a elaboração da mise-en-scène e as especificidades da construção narrativa dos filmes, não só nos ajudam a compreender as obras, como, e até por isso mesmo, abrem alternativas ao trabalho em sala de aula. Todavia, ressalto sempre que, antes de pensarmos em afetar nossos alunos, devemos reeducar o nosso olhar. É o que tenho procurado fazer a partir de livros como “A arte do cinema: uma introdução”, de David Bordwell e Kristin Thompson e “A linguagem do Cinema”, de Robert Edgar-Hunt, John Marland e Steven Rawle; ou a partir de textos que discutem os significados da imagem em movimento, como a obra de Jacques Aumont (“A imagem”, “Dicionário crítico de cinema” e “A estética do filme”) e de Christian Metz (“A significação do cinema”).

Sinceramente, penso que alguém que quer fazer uso do cinema como ferramenta de aprendizagem não precisa ser um historiador do cinema. Porém, é indispensável conhecer um pouco da trajetória dessa arte, que já tem mais de um século. Prezo por isso, porque vejo a produção cinematográfica ser excessivamente associada aos países mais ricos, como se o cinema fosse sempre uma superprodução. Sem falar que muitos olham para imagens de filmes de décadas atrás como se estivessem vendo uma pré-história, experimentos do que hoje vemos na tela. Estudar um pouco a “evolução” do cinema, é também uma forma de nos posicionarmos criticamente diante do atual cenário de produção e difusão de imagens. Sem falar que o professor precisa fazer as imagens de épocas diferentes dialogarem temporalmente num sentido de diacronia. Pretendo resenhar aqui alguns livros que fazem um apanhado geral da história da produção fílmica, como “História do cinema”, de Mark Cousins. Porém, algumas obras procuram tratar especialmente de um dado período dessa trajetória, como é o caso de “Cinema: a invenção do século”, de Emmanuelle Toulet, que conta os primeiros anos dessa aventura, fazendo um balanço do progresso técnico que levou ao registro das imagens em movimento, e dos seus primeiros protagonistas.

Embora não pretenda resenhá-las aqui individualmente, faço menção a obras que serão aproveitadas por mim na construção dos textos sobre os filmes. São livros sobre filmes e sobre realizadores. São fontes de informação muito ricas e certamente ampliarão substancialmente a compreensão das narrativas. Cito à título de exemplo “Nos bastidores de De volta para o futuro”, de Cassen Gaines e “2001, uma odisseia no espaço: Stanley Kubrick, Arthur C Clark e a criação de uma obra-prima”, de Michael Benson. Reforço a importância dessas leituras porque nos ajudam a perceber a intertextualidade da obra fílmica. Aqueles que pretendem trabalhar com cinema na escola precisam se amparar em informações externas ao filme, entender o seu contexto de produção, com que tempos e outros textos dialoga. Até mesmo pensar em considerar a releitura que um filme está propondo, já que ele pode ter como base uma obra produzida em outro tempo, que por sua vez pode apresentar nuances de outra temporalidade, permitindo-nos criar uma ponte entre esses momentos. É preciso estar disposto a compor esse mosaico de textos não só para entender o filme, mas para explorar melhor seu potencial em sala de aula.

Evidentemente, não poderiam faltar livros que discutam a relação cinema, história e ensino de História. Nesse caso, vou propor uma subdivisão. Em alguns casos, vou sugerir obras que falam propriamente da natureza da interação história e cinema, como o livro seminal de Marc Ferro, “Cinema e História”, ou “A história nos filmes, os filmes na história,”, de Robert Rosenstone. Serão resenhadas obras importantes como as coletâneas “Passado imperfeito”, organizada por Mark Carnes; assim como “O cinema vai à guerra” e “Cinematógrafo: um olhar sobre a história”, publicações brasileiras importantes sobre o tema. No que se refere ao filme como meio para o ensino, menciono alguns livros muito importantes na minha trajetória como educador, “O cinema na sala de aula”, de Marcos Napolitano, e “Cinema e Educação”, de Rosália Duarte, são exemplos. Mais especificamente sobre o filme no ensino de História, escrevi sobre “O cinema e o ensino de História”, de Renato Mocellin, e uma obra que li recentemente, e que recomendo de maneira antecipada, “Luz, câmera e História: práticas de ensino com o cinema”, de Rodrigo de Almeida Ferreira.

Fiz questão de citar muitas obras nesse texto porque, creio, ele mesmo já possa servir como uma sugestão geral de leituras. Digamos que produzi um pequeno trailer do que virá. Porém, nenhuma dessas leituras faria a menor diferença, se o mais importante, que são os filmes, não forem vistos, e vistos muitas vezes, todas as vezes que forem necessárias. Pois como é difícil (felizmente) esgotar os recursos que alguns filmes oferecem a nós! Há enredos tão extraordinários que sempre nos parecem novos ao revê-los. Mas é fundamental que estejamos dispostos a procurar coisas novas, diferentes, desafiar nosso olhar e os modelos já assimilados, sair do conforto da forma que às vezes já não nos provoca nem nos afeta mais. É importante ver filmes de todas as épocas e lugares. Fugir dos estereótipos, educar pela diversidade de visões de mundo, apreciando películas de países africanos, do pulsante cinema iraniano, do vibrante e contestador cinema latino-americano, os roteiros fora da caixa dos cineastas do circuito independente dos Estados Unidos, apreciar a produção asiática e do leste europeu. Enfim, ver o cinema. E hoje temos ferramentas de acesso que praticamente nos permite ter a história da sétima arte ao alcance de apenas alguns cliques.

Pessoalmente, sempre fui fã de guias de filmes. Tenho a mania de comprá-los e marcar aqueles que já vi e ir em busca do desconhecido. Comecei comprando aqueles publicados anualmente pela Abril cultural, os guias de cinema e vídeo como eram chamados na década de 1990, e os da já extinta revista SET. Vou deixar como sugestão uma obra popular, e que tomei como desafio nos últimos anos: “1001 filmes para ver antes de morrer”, organizada por Steven Jay Schneider. Meu desejo é cumprir à risca o que diz o título da obra.

Inclusive, esse já será o primeiro texto, digamos “o marco zero” dessa aba. Assim o farei porque lembro das palavras de outro professor que, vendo-me folhear o livro citado acima, disse que seria o primeiro passo para quem quiser desenvolver um projeto com a sétima arte em sala de aula ver muitos filmes. Diplomaticamente, disse-lhe que discordava. Acho que isso até mesmo prescinde o primeiro passo. Agradeço a atenção, e solicito enfaticamente ao leitor do site que faça sugestões. Há certamente muitos livros que desconheço ou que ainda não adquiri. Conto com vocês para ampliarmos esse debate. Bons filmes e boas leituras!


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O autor


Caro leitor, meu nome é Josemar de Medeiros Cruz. Sou professor de História da rede pública de ensino do Estado do Ceará e também integro o quadro docente da Secretária de Educação do município de Brejo Santo. Coordeno o projeto História & Cinema há mais de dez anos, e além deste espaço, escrevo também para os blogs CineHistória e Chá com cinema.


 

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