Lendo os filmes
janeiro 7, 2020
Cinema e contemporaneidade
janeiro 7, 2020
 

Nos tempos do cinema


Realmente, é preciso reconhecer de antemão que não é preciso ser uma historiador do cinema para trabalhar com o cinema no ensino de História. Dito isto, é justo também admitir que como professores de História, ignorar toda a historicidade da produção fílmica, sua longa trajetória de mais de um século, e fixar-se no uso de obras muito recentes à título de que estas serão mais assimiláveis, mostra-se uma ação pouco disposta a correr riscos. Consequentemente, se apelamos para o fácil reconhecimento e identificação com o recurso que utilizamos, provavelmente pouco contribuiremos para reeducar o olhar do aluno, no sentido do desenvolvimento de competências relativas ao letramento imagético.
 

É claro que o professor precisa levar em consideração uma série de pormenores no momento em que for escolher o filme que servirá a sua finalidade didático-pedagógica. Entre eles, a faixa-etária dos estudantes. Neste caso, é mais que natural que procure selecionar títulos que produzam um efeito mais lúdico quando se tratar de alunos que frequentam os primeiros anos do Ensino Fundamental; do mesmo modo, pode arriscar obras um pouco mais densas para um público quase adulto do terceiro ano do Ensino Médio. O dilema entre filmes mais “fáceis” ou que apresentem mais dificuldade de compreensão, não me parece de forma alguma excluir a possibilidade de que utilizemos obras dos mais variados períodos do cinema.

O uso de um filme de décadas passadas pode ser uma estratégia para mexer com a maneira do aluno operar as noções de tempo e sua representação. Uma filmagem realizada na década de 50, por exemplo, pode permitir ao docente propor não só uma leitura da época retratada nele, mas como esta dialoga com eventos anteriores e atuais. É bem comum, admito, que os alunos apresentem uma rejeição inicial a ideia de assistir a um filme “antigo”, mas esse comportamento também pode ser problematizado. Afinal, convenhamos, isso não é uma exclusividade deles, pois é bem comum que a maioria das pessoas que veem filmes com certa frequência, apreciar apenas os lançados recentemente.

Posso citar duas experiências em sala de aula com filmes produzidos há bastante tempo, que, ao contrário do que se poderia imaginar, resultaram em momentos de calorosos debates e interesse dos alunos. Foi o caso de “fahrenheit 451”, de François Truffaut (1966) e “Tempos modernos”, de Charles Chaplin (1936). O primeiro foi trabalhado com alunos do Ensino Fundamental quando discutimos os elementos do passado, presente e futuro representados no filme. O leitor pode estar imaginando o porquê da citação do filme de Chaplin, já que ele é muito utilizado em sala de aula, e por ser engraçado, além de genial, os alunos tendem a ter uma ótima aceitação.
 

Bem, numa das memoráveis sessões do projeto História e Cinema na educação de Jovens e Adultos, reuni os alunos para que assistíssemos ao filme, cujo título revelei apenas no instante da exibição, dizendo que se tratava de uma obra de 1936. Como esperava, a reação foi bastante negativa, com alguns dos presentes ameaçando ir para casa, pois não queriam ver “filme mudo em preto e branco”. Depois de alguns minutos de argumentação, consegui convencê-los a ficar e ver o filme. Ao final da exibição e do debate, esses mesmos alunos me procuraram para dizer que “Tempos modernos” havia sido o melhor filme que eles haviam visto e que aprenderam muitas coisas com ele. Na verdade, imagino que o mais importante que eles tenham aprendido tenha sido justamente não subestimarem a qualidade de um filme pela época em que foi produzido. É preciso que nós professores pensemos nisso também.

Por isso, nessa postagem da seção Textos e telas, quero falar sobre a importância de nós conhecermos mais a história do cinema. Como disse no início, não é uma condição sine qua non, que nos tornemos especialistas no assunto, mas um conhecimento básico dos períodos, dos movimentos e dos personagens que construíram a sétima arte é fundamental para escaparmos de uma visão turva que atribui aos tempos mais “remotos” do cinema uma condição de pré-história das imagens. Portanto, como em outras postagens eu tratarei de livros que digam respeito mais especialmente a linguagem do cinema, o intuito aqui é sugerir a leitura de uma obra que em suas pouco mais de quinhentas páginas, passa a limpo a história dos filmes.

História do cinema: dos clássicos mudos ao cinema moderno, de Mark Cousins, é um belo panorama da trajetória da sétima arte. Como já indicado pelo subtítulo, o texto percorre todos os caminhos que conduziram o homem a aperfeiçoar as primeiras técnicas de captação de imagens em movimento, dos pioneiros do final do século XIX aos impressionantes efeitos especiais e aos filmes em 3D. A linha narrativa que conduz o enredo é a intenção de possibilitar ao leitor compreender como se deu a evolução da linguagem do cinema. Ou seja, como atores e, principalmente roteiristas e diretores, foram aos poucos construindo a gramática dos filmes. A elaboração dos planos, a montagem, o aperfeiçoamento técnico, como a captação do som, foram saltos que conduziram a realização de obras cada vez mais inovadoras, e com o tempo levaram o cinema a formar suas características como a arte que melhor definiu o século XX.
A obra apresenta dez capítulos, cada um deles com uma marcação temporal específica. O primeiro, que trata do início da captação das imagens e da constituição das primeiras técnicas, cobre o período entre 1895 a 1903; enquanto o capítulo 5, chamado de “A devastação da guerra e uma nova linguagem cinematográfica”, analisa a produção de filmes do final da década de 1940 ao início dos anos 1950. Porém, Cousins procura evitar de incluir em sua narrativa apenas o cinema hollywoodiano ou europeu, e há muito destaque para os filmes de outras regiões, como a Ásia. O que certamente contribui para que possamos expandir nosso horizonte cinematográfico.
 

A experiência da leitura do livro pode ser aumentada se quisermos, como aliás eu procurei fazer, concomitantemente assistirmos a série “A história do cinema: uma odisseia”, lançada em DVD no Brasil). Como foi escrita e dirigida pelo mesmo autor do livro, cada episódio corresponde exatamente ao texto dos capítulos, o que acaba servindo para “dar vida” aquilo que vamos lendo. Já que se trata de cinema, nada melhor do que podermos ver aquilo que está sendo descrito na versão em papel, embora a série não se preste a ser apenas uma ilustração.

Acrescento algo que considero de fundamental importância, não só para acompanhar este livro, mas todos os outros que vou aqui sugerir através dessa seção: é preciso ver os filmes que são apresentados e analisados nos livros. Mesmo que não tenhamos tempo, nem oportunidade de assistir a todos os filmes, já que são mencionados centenas deles, alguns recebem destaque especial, e acabam sendo vistos como sínteses da obra de um diretor e/ou movimento. Nesse caso, por exemplo, ao ler sobre a Nouvelle Vague, Expressionismo alemão ou Cinema Novo no Brasil, é muito importante selecionar algumas produções marcantes de cada uma dessas cenas, e analisá-las. Isso torna a experiência muito mais proveitosa. Posto que há pouca valia apenas nos informar sobre a existência desses filmes e não usufruir do impacto que eles causam em nossa forma de enxergar o cinema. Caso consigam fazer isso, verão que se produzirá um círculo virtuoso. Assistir aos filmes citados nos livros torna a experiência da leitura mais completa; da mesma forma que procurar conhecer mais sobre a história dos filmes, amplia o aprendizado proporcionado pelo hábito de vê-los.

Se o leitor estiver ainda pouco familiarizado com a história do cinema, e até mesmo com a linguagem dos filmes de uma maneira geral, com o passar do tempo, vou sugerir uma série de obras que certamente vão dar conta de preencher esse vazio. Estamos caminhando juntos, não tenham dúvida. Há muita coisa ainda pra ler. Como disse antes, não somos historiadores do cinema, mas sabemos como é importante aprendermos mais, para que possamos fazer um uso mais produtivo dos filmes em sala de aula. Lembro das primeiras obras que eu li sobre cinema, já faz algum tempo, que acabaram sendo muito importantes no começo da minha empreitada. Mas é com o tempo que vamos assimilando o modo de ver cinema. Por isso, enfatizo sempre que, mesmo que nos apoiemos nessas leituras para aprendermos mais sobre os filmes, é a ação de vê-los e ser afetado por eles, que verdadeiramente nos torna mais aptos a entendê-los.

Referência da obra citada: COUSINS, Mark. História do Cinema: dos clássicos mudos ao cinema moderno. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
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