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janeiro 7, 2020
Lendo os filmes
janeiro 7, 2020
 

É preciso ver para saber (o que fazer com os filmes)


Como anunciei na postagem de apresentação dessa seção do site, o texto inaugural iria tratar do “marco zero” para aqueles que pretendem pensar o uso do filme como recurso didático-pedagógico em sala de aula, ou seja, a necessidade de apreciá-los. Por mais que pareça uma sugestão óbvia, ela apresenta algumas adjacências que, creio eu, poderemos considerar nessa conversa. Afinal, ver filmes, no sentido que aqui eu pretendo refletir, está muito além do ato de consumir imagens.
 

Mesmo considerando que não se trata de uma questão de quantidade de filmes vistos, o processo de educação do olhar que o uso do cinema proporciona, pressupõe alguns “esforços”, pois é preciso conhecer as obras. Todavia, não tenho o objetivo de enunciar que a prática da utilização do recurso fílmico na escola esteja restrita ao cinéfilo, que é capaz de dissertar horas a fio sobre correntes e estilos cinematográficos, a construção da mise-en-scène, ou a própria história da produção de filmes. Muito pelo contrário, meu desejo é que mais pessoas considerem essa ferramenta em seus planos de curso, e possam explorá-la com proficiência. Porém, creio não ser possível fazer isso sem alguns cuidados. Preocupar-se em conhecer o contexto de produção da obra, com que outros textos o filme dialoga, os signos ideológicos e estéticos apresentados. É importante para que seja explorado o potencial didático da obra escolhida. E procurarei tratar dessas e de outras questões nos demais textos.

Mas, como já disse na introdução, é preciso ver os filmes. Pois, até mesmo essas questões que envolvem a realização de uma obra será melhor articulada por alguém que possuir uma cultura cinematográfica um pouco mais abrangente do que a média. Isso deve valer sim, para aqueles que pretendem fazer uso dessa arte para ensinar outras pessoas, embora, como já fiz questão de salientar, o professor não precise ser um “especialista” em cinema. Todavia, a ação de selecionar um filme para ser exibido, sobre o qual reflexões serão propostas, é um ato de curadoria, e pressupõe o uso de critérios. Mesmo que seja apenas para “ilustrar” os conteúdos estudados (o que seria lamentável), é preciso ter um conhecimento anterior do texto fílmico.

 
Entretanto, alguns poderão pensar que os livros didáticos sugerem o uso de filmes, e que o professor poderá seguir essas dicas, sem possuir necessariamente um conhecimento sobre outras obras. É possível. No entanto, sabemos o quão limitados são os espaços para essas sugestões, e muitas vezes os filmes indicados não atendem as necessidades de um público-alvo muito específico que o professor precisa dar conta. Sem falar que, nesse caso, ele ficará “refém” de um outro olhar, de alguém que efetivamente viu o filme e que possuiu uma cultura imagética maior, e que por isso mesmo enxergou o potencial de seu uso. Sem falar que geralmente o espaço dedicado a essas sugestões é muito pequeno no material, e não permite que o autor aprofunde as orientações.

O que quero dizer é que, para que o professor possa preparar um bom plano de ação, não basta ver o filme antes do aluno, embora admita que muitas vezes nem isso seja feito; é necessário adquirir o hábito de ver filmes, permitir-se não só aprender com eles, mas aprender a pensar a partir deles. Essa não é uma construção en passant, leva tempo. Mesmo que tenhamos convicção de qual filme encaixe como recurso para o desenvolvimento de certa competência, é preciso estudá-lo, percebê-lo dentro do contexto de outras obras, o que exige alguns passos muito além da simples exposição e debate sobre o título selecionado. Falando assim, parece uma exigência hercúlea para um professor que deseje fazer uso desse recurso imagético, não é mesmo? Vejamos que não.

Imaginemos um professor de literatura que selecione um livro de Machado de Assis para que seus alunos leiam e sobre ele se produza uma série de debates e atividades. Por exemplo, Dom Casmurro. Pois bem, suponhamos que o professor não saiba nada sobre o autor da obra, não conheça nem tenha lido nenhum outro livro do autor, e nem mesmo faça ideia do contexto histórico em que ele escreveu, ou corrente literária a que pertenceu. Ufa! Parece muita coisa? Bem, todos esses saberes são exigidos do professor de literatura, pois ele precisará apresentar o livro dentro de um universo de outras referências que contribuirão para que o aluno signifique aquilo que está lendo. O mesmo não vale para um filme?

É possível que o leitor desse texto diga que não existe uma aula de cinema, como existe de Literatura. Porém, pedagogicamente isso não tem nenhuma relevância, já que o que importa é o objeto de conhecimento sobre o qual o aluno está debruçado. Seja ele um filme, um livro, uma pintura ou uma música, a obra não está isolada das subjetividades inerentes a quem a construiu, nem as condições objetivas de sua existência. Portanto, o professor precisa conhecer o objeto com o qual trabalha, e ele não se limita, no caso do filme, a sua duração. Muitas vezes, a sua compreensão está mais naquilo que ele reflete do que naquilo que ele mostra. Assim como não é possível ensinar a ler sem ter aprendido a ler, educar e orientar a partir do uso de imagens pressupõe uma educação imagética do professor. E para isso, é preciso ter contato com essas imagens, e da forma mais diversificada possível. Sendo assim, vejo duas coisas a fazer, e de preferência que sejam feitas conjuntamente: ver filmes, e aprender a aprender com eles. Como essa segunda será objeto de outras postagens, tratarei a partir daqui a mais elementar de todas as condições para quem quer usar filmes em suas aulas: vê-los, pois se não, como sabê-los?

Bem, partindo da suposição de que não daremos conta de ver todos os filmes (nem seria preciso, evidentemente), a pergunta é: o que ver? Pois é, nesse caso precisaremos de uma curadoria. E já que essa seção tem como finalidade indicar livros, é isso precisamente o que vou fazer agora, sugerir leituras que, por sua vez, levam-nos a descobrir as obras que podem ser a porta de entrada para a extraordinária diversidade do cinema. A maioria são de leitura bastante acessível, como por exemplo os guias de filmes que são publicados em periódicos. Essa, aliás, foi a minha introdução nesse universo. Sempre tive o hábito de adquirir os guias de cinema e vídeo da Editora Abril Cultura. Porém, mais recentemente alguns revistas vem publicando suas seleções de filmes, geralmente escolhidos por especialistas, historiadores do cinema, críticos de arte ou mesmo jornalistas que escrevem sobre filmes. Cito como exemplo a edição da revista Bravo dedicada aos “100 filmes essenciais”.

Algumas publicações são mais específicas, como foi o caso da revista Grandes guerras, ligada a Aventuras na História, que lançou o guia “os 100 melhores filmes de guerra de todos os tempos”, e mais recentemente a revista Dossiê Superinteressante publicou “101 filmes de Guerra”, cuja chamada de capa traz o texto: “as batalhas mais épicas. Os traumas dos veteranos. Os heróis solitários. O guia para você ir direto às melhores produções.” Nesse caso, aparecem temáticas mais direcionadas ao conteúdo de História. No que se refere a Dossiê Superinteressante, os editores chegam a apresentar uma organização temporal dos assuntos tratados nos filmes, como “Segunda Guerra Mundial”, “Guerra do Vietnã” e “Guerra Fria”. Embora seja interessante perceber que o tempo de produção dos filmes não siga essa mesma linearidade, já que alguns dos filmes sobre a II Guerra que são analisados forma feitos em épocas distintas, o que já suscita discussões interessantes sobre possível divergências de interpretação e representação condicionados pelo contexto em que o filme foi feito.

Alguns livros também se dedicam a sugerir obras que introduzem ou aprofundam o conhecimento sobre os filmes. É o caso do livro “Cinema”, de Ronald Bergan. Mesmo não se tratando apenas de um guia, já que o livro apresenta uma pequena história do cinema, seus gêneros, principais diretores e atores, entre outros aspectos, na parte final da obra, o autor lista os 100 filmes que, segundo sua opinião transformaram “nossa percepção artística e deixaram uma marca indelével na história do cinema”. Como é comum nesse tipo de publicação, o texto traz além de informações básicas sobre a película, numa pequena ficha técnica, há um resumo da obra ao lado de fotografias da produção, ou até mesmo o cartaz de divulgação quando do seu lançamento. Há uma preocupação, que aliás também é muito comum nesses guias, de incorporar títulos que denotem uma abrangência temporal, apresentando filmes que vão desde “O nascimento de uma nação” (1915) até obras mais recentes, lançadas no século XXI.

 

Ao contrário do livro acima citado, que não tem o propósito de ser “apenas” um guia de sugestões, e não apresenta filmes com uma temática fechada, Alexandre Ayub Staphanou em seu “Cinema e História: guia de filmes”, como o próprio título sugere, propõe uma compilação de obras que podem ser usadas pelos professores de história para tratar dos temas comuns aos materiais didáticos, embora o autor faça um breve introito à relação entre o cinema e o conhecimento histórico. Acompanha cada título uma contextualização histórica, uma sinopse e em alguns casos é apresentado um texto adicional sobre o filme ou sobre o evento por ele explorado. Considero um ponto forte do livro o fato do autor sugerir filmes que não são tradicionalmente relacionados com o conteúdo de história, o que ajuda a dar uma abrangência maior ao potencial do uso do cinema, além de redimensionar os objetivos do estudo da história, tradicionalmente vistos como algo relativo ao passado apenas.

 

Para finalizar, indico uma obra que pode contribuir com aqueles que pretendem ampliar seu conhecimento da sétima arte a partir dos próprios filmes: “1001 filmes para ver antes de morrer”. Aliás, é o que venho fazendo nos últimos anos: percorrer a história do cinema através das obras que tornaram essa arte tão significativa ao longo de mais de um século. Como já disse, se queremos aprender e ensinar a partir dos filmes, temos que vê-los, mas não só os filmes “contemporâneos”, mas os do chamado primeiro cinema, os da era dourada Hollywood, da Nouvelle Vague, do neorrealismo italiano, do Cinema novo no Brasil. Enfim, é preciso debruçar-se e aprender a arte de ver filmes, permitir que diretores, roteiristas e atores nos ensinem a apreciá-los. Estou fazendo com esse livro o que geralmente faço com as outras listas, vou tentando segui-las.

Enfim, penso que quanto mais filmes nós assistimos, mais aperfeiçoamos nosso olhar. Mas, como espero ter deixado claro, não é apenas uma questão de quantidade, mas também de diversidade. E mais: essas listas que sugeri estão fechadas, mas podemos fazê-las dialogar com outras obras. Esses guias, como já salientei, procuram apresentar uma abrangência temporal e contemplar todas os períodos da história do cinema. E mesmo numa lista de 1001 filmes, não é possível dar cabo de abordar uma necessária intertextualidade. Muitas vezes é mencionada apenas uma obra de um determinado diretor, ou mesmo poucos títulos de correntes cinematográficas e estilos mais remotos que marcaram a sétima arte. Mas podemos produzir essa intertextualidade a partir do nosso próprio interesse, pois com o tempo nós vamos nos identificando com a obra de um ou de outro realizador, e vamos percebendo aquilo que melhor se encaixa com o que pretendemos aprender ou ensinar.

Embora imagine que quem procure este site sejam professores de História interessados no uso de filmes em suas aulas, e que já possuam certo hábito de vê-los, deixo claro que esses guias que apresentei acima contém obras de todos os gêneros, temáticas e para os mais variados graus de interesse pela sétima arte. Pois, antes de tudo, um filme existe para nos comunicar algo, e por isso pode ser uma ferramenta que permita instigar um diálogo entre sujeitos e objetos de conhecimento. É preciso ter competência para ler o filme, embora possa ser ele um meio para o desenvolvimento de outras competências.

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