Cinema em tempos de EAD
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Anatomia de uma experiência
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Anatomia do tempo


Foi publicado aqui no site um artigo sobre “Barbosa”, curta-metragem dirigido por Ana Luíza Azevedo e Jorge Furtado, lançado em 1988. Procurei investigar seu uso como mediação no desenvolvimento do raciocínio histórico em sala de aula. Como o filme é baseado em dois textos do jornalista e crítico de cinema Paulo Perdigão, resolvi me debruçar sobre essas obras e analisar como elas poderiam ser utilizadas para dar suporte ao trabalho pedagógico com o filme. Entretanto, para além da preocupação didática, o livro “Anatomia de uma derrota” e o conto “O dia em que o Brasil perdeu a Copa”, podem ser lidos como formas de escrita do tempo.
 

No filme, somos apresentados a Paulo, um homem atormentado com a obsessão de voltar ao dia 16 de julho de 1950. Neste exato ponto da linha temporal, o Rio de Janeiro sediava a última rodada do campeonato mundial de futebol e o objetivo de Paulo é mudar o desfecho dessa história, que culminou com a derrota do time brasileiro e a condenação do goleiro Moacir Barbosa, que supostamente havia falhado no lance que decidiu o jogo em favor dos uruguaios.

A estrutura narrativa, assim como os personagens, são extraídos do conto “O dia em que o Brasil perdeu a Copa”, publicado em 1975. É nele que estão presentes em especial os elementos “ficcionais” da trama. O autor tem o mesmo nome do personagem do filme e isso não é uma mera coincidência. Ambos, personagem e autor estiveram no estádio aos 11 anos de idade e presenciaram um dos episódios mais emblemáticos da história brasileira, conhecido como maracanazo. O conto foi republicado no livro “Anatomia de uma derrota”, em que Perdigão reconstitui não só a derrota, com seus personagens e dramas, mas o próprio tempo. É desta segunda obra, portanto, que toda a contextualização é transportada para a tela.

Ver o filme e ler os dois textos reforça a impressão de que a história contada por Perdigão se sustenta justamente nessa combinação entre elementos factuais e os floreios do imaginário ficcional, que parecem ser o reflexo da consciência do autor. Um fluxo de memórias emprestadas e ressignificadas historicamente perpassam tanto a memória do Paulo escritor como a do personagem Paulo. Embora seja a partir deste que nós nos aproximemos do drama da inocência perdida pelo trauma da derrota, é a partir do outro que aprendemos sobre a dimensão coletiva do fato, cujo tempo e ação daqueles que escrevem a história, traduzem em acontecimento.

 
 

A reação que tive ao percorrer as páginas de Anatomia de uma derrota é a de que, na impossibilidade de viajar fisicamente em uma máquina do tempo, o autor nos carregou junto com ele numa viagem pela sua memória reconstituída. Ao ler que era possível passear “pelas ruas serenas, quase desertas e mesmo bucólicas do Rio, estacionando o carro nos jardins da Quinta da Boa Vista e indo a pé até o Maracanã, em meio a um povo ordeiro e amável,” já fui transportado para outro mundo. Pois, quase podendo acompanhar os passantes rumando em direção ao estádio, convictos da vitória do time brasileiro, produziu-se em mim certa impressão de pertencimento aquele cenário, exposto em cada uma das suas partes, numa espécie de anatomia do tempo.

 

O livro “Anatomia de uma derrota” e o conto “O dia em que o Brasil perdeu a Copa” como suportes de aprendizagem no trabalho com o filme “Barbosa”

Não apenas como suprimento de informações, mas pela ambiência temporal que ele captura, creio que a leitura desses dois textos seja uma ferramenta valiosa para os professores que desejarem utilizar o filme “Barbosa” em sala de aula. No mínimo, pode ser um ponto de partida para que o docente possa respirar esse universo que transita entre o tempo da escrita da obra e o que ela pretende (re)construir. Essa dupla temporalidade está impregnada de sentidos e direções, já que Perdigão se esforça não só para nos mostrar o contexto no qual ele tinha 11 anos, mas vê-lo e revelá-lo com os olhos daquele menino. É nessas idas e vindas que percebemos a passagem no tempo impregnada nas transformações sociais e físicas do Rio de janeiro e do Brasil.

 

Além dessa imersão que nos instiga a pensar historicamente, absorvidos pela empatia que criamos com a obsessão de Paulo por esse dia que nunca acabou, o livro apresenta, já em sua introdução, elementos que certamente ajudarão o leitor/professor que deseje organizar sua sequência didática, contemplando as categorias temporais como elementos para o desenvolvimento do raciocínio histórico. Nesse sentido, ao comparar passado e presente, é fundamental observar como cada contexto se relacionava com seu espaço de experiência e seu horizonte de expectativas. Conhecemos tanto o processo que levou a constituição daquele evento, como a repercussão que se seguiu a ele, com toda a “mitologia” que se cercou àquele jogo. Além de uma ótima opção de leitura para a compreensão de um tempo em que transformações fundamentais marcaram a sociedade brasileira; o livro, assim como o conto, indicam caminhos para debates em sala de aula, combinados a exibição do filme “Barbosa”. Vou apontar alguns.

Embora o roteiro do filme tenha sido construído com base na sequência de ações antecipadas no conto “O dia em que o Brasil perdeu a Copa”, há diferenças que podem ser exploradas em um estudo comparativo entre as duas obras, o que é uma operação intelectiva fundamental no processo de desenvolvimento das competências relativas a área de Linguagens e Códigos. Nesse caso, à princípio já teríamos ao menos três gêneros textuais: o filme, o roteiro escrito para o filme e o conto propriamente dito. Seria muito interessante pensar, com os alunos, de que maneira essas diferenças entre um e outro texto vão dando forma e características próprias a cada linguagem, embora tratem, em tese, do mesmo conteúdo.

Por exemplo, há trechos do conto que são reproduzidos ipsi literis no filme: “O mundo, que parecia ser fiel e submisso aos meus desígnios, relevou-se de subido contingente e absurdo”. No texto original, acrescenta-se uma marcação temporal: “naquele 16 de julho de 2020”. No filme, a alusão a data já havia sido feita com o uso de imagens e na voz de um locutor e do prefeito do Rio de Janeiro, então capital brasileira, lembrando que estavam ali em função da aguardada vitória brasileira na partida final da Copa do mundo. Penso ser construtivo, conduzir o aluno a perceber essas sutis diferenças, e leva-lo a entender como cada suporte textual usa artifícios e fornece pistas para compreender o encadeamento lógico da narrativa. Nesse caso, a localização temporal.

Além disso, há elementos que pontuam distinções factuais entre o conto e o roteiro do filme (por consequência, o próprio filme), como a existência da máquina do tempo. No conto sabemos que o personagem a comprou em uma loja de relíquias na Califórnia, informação subtraída do roteiro, que sugere, pela ausência de informações específicas, que Paulo teria, ele próprio, inventado a máquina do tempo.

No que se refere a comunicação entre o texto e o leitor/espectador, vemos que no filme as falas de Paulo são em OFF, ou seja, ouvimos sua consciência, salvo à exceção de quando ele grita tentando chamar a atenção do goleiro Barbosa. No texto escrito temos o que se chama discurso indireto. Embora exista a fala diegética, como no filme; neste há uma combinação de sons ouvidos de fato: radialista, prefeito, torcida; uma polifonia que nos causa a impressão de realidade.

Embora não pretenda pormenorizar aqui todos os possíveis tópicos que podem ser explorados pelos professores, quero pontuar um que considero essencial. Como arte visual, o cinema evita (o bom roteirista deve se preocupar com isso) produzir no público uma sensação de ver algo redundante. Em síntese: o que está sendo mostrado não precisa ser dito. No caso de “Barbosa”, é interessante instigar a percepção dos alunos sobre como no filme não houve uma preocupação em dizer que Paulo teve que vestir roupas da época, assim como levar cédulas que circulavam em 1950, pois as imagens já dão a entender isso.

 
 

Como professor de História, confesso que me chama muito a atenção o momento em que no conto, Paulo nos diz “um bonde cheio de gente, todo mundo rindo. Coitados, mal sabiam o que os esperava.” Ele chega a pensar em advertir as pessoas sobre o que aconteceria, mas teme sofrer alguma reação violenta. Um pouco a frente, enfim, um comentário precioso para quem, como eu, delicia-se com reflexões sobre a ordem do tempo e seus labirintos: “As coisas da realidade já não me revelavam nada que eu já não soubesse de antemão. Era como se eu encontrasse nelas exatamente aquilo que nelas havia colocado. Esse mundo passado, que agora era o meu presente, em nada enriquecia o meu saber.” Espantoso, não? Caro leitor, será que não é assim que muitas vezes olhamos para nosso passado, quando passeamos pelos bosques da experiência histórica?

A combinação desses dois trechos do conto me faz pensar que não podemos tentar compreender o passado apenas com os olhos de quem já sabe o que aconteceu. Embora isso soe como uma experiência racional, é também resultado de um raciocínio estritamente linear. O passado precisa ser também compreendido como um presente. Portanto, precisamos levar em conta o componente contextual. Para não ficarmos apenas em abstrações, acompanhemos o raciocínio do personagem Paulo. Ele diz: “coitados, mal sabiam o que os esperava.” Mas vejamos, o Brasil ganhou de 7 a 1 da Suécia e 6 a 1 da Espanha poucos dias antes, enquanto o Uruguai, embora reconhecidamente uma boa equipe, chegou à final com extrema dificuldade, enfrentando menos adversários, com magros resultados. Precisávamos só empatar. Ou seja, provavelmente qualquer um estaria contando com a vitória. A não ser que, evidentemente, já soubesse que ela não aconteceria.

 
 

Já em “Anatomia de uma derrota” temos um suporte muito rico para ser usado durante as aulas. O livro é dividido em duas partes, sendo a última dedicada a dissecação da partida final e de suas consequências mais imediatas. Há um capítulo para cada um dos tempos de jogo, em que o autor transcreve a narração da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Li esses dois capítulos acompanhando o arquivo de áudio disponibilizado na internet, e me vi quase torcendo para a vitória brasileira. Existem poucas imagens filmadas daquele jogo, na época exibidas com uma semana de defasagem nos cinemas de São Paulo e Rio de Janeiro. Esse aspecto permite uma analogia com os tempos atuais, quando o compartilhamento dos conteúdos é imediato.

Perdigão teve o cuidado de intercalar os trechos da narração reproduzidos no livro, com uma descrição das características da época, como a supra citada demora para o acesso às imagens. Alguns episódios ocorridos dentro de campo também são descritos em uma temporalidade que transpassa os 90 minutos da partida, como no caso do “suposto” tapa desferido no brasileiro Bigode pelo capitão do escrete adversário, Obdulio Varela. O autor demonstra, fazendo uso de uma série de depoimentos dados ao longo do tempo, como esse mesmo fato apresentou várias versões, alimentadas muitas vezes pelos próprios envolvidos.

 

Penso que aqui está uma dinâmica que justifica a leitura desse livro para quem se interessa pela representação do tempo na narrativa. Pois, dentro do relato da partida, vemos o tempo se estender e se contrair. Ora seguimos minuto a minuto o jogo, ora paramos e viajamos a um futuro mais distante, ou a um passado de poucas horas antes do jogo. Flashfowards e flashbacks dão o tom dessa parte do livro. Entretanto, todo o conjunto do texto é uma forma também de imprimir uma experiência do tempo.

Antes de acompanhar os passos dos jogadores em campo, somos apresentados ao país que tentava se afirmar como nação. Aquela Copa do mundo em 1950 seria a consagração desse projeto e o início de uma nova era, momento a ser coroado com o título de campeão do mundo, no maior estádio do mundo. Enquanto o presidente da FIFA percorria os caminhos internos do colosso de concreto ainda não totalmente concluído, repassando em sua mente as palavras elogiosas ao Brasil a serem proferidas no momento em que entregasse a taça ao capitão Augusto, o silêncio absoluto testemunhava o gol do Uruguai e a certeza do absurdo e da contingência da história.

A descrição pari passu desses momentos, quando somos intermitentemente tragados pelo “tempo natural dos acontecimentos” é outra atração do texto de Perdigão. E essa estrutura, que combina o uso de narrativa em tempo real com saltos em direção ao passado e ao futuro, pode ser significada pelo leitor como uma forma de demonstrar a vertigem temporal que caracteriza nosso raciocínio histórico. Embora em “Anatomia de uma derrota” também tenhamos passeios mais lineares.

Nos primeiros capítulos nos é contada uma pequena história das copas do mundo de futebol até então. A escolha do Brasil como sede do torneio em 1950, bem como a preparação do selecionado brasileiro. Porém, como hoje, em 2020, temos a experiência de termos visto outro campeonato mundial sendo disputado em nosso território, é impossível não traçarmos uma série de paralelos, como as pressões da FIFA devido ao atraso das obras. Mas é na descrição da paisagem cultural da época que, reconheço, o texto mais me encantou.

Tendo como pano de fundo a Guerra Fria, “conhecemos” o Brasil através dos filmes, das peças e das músicas de Luís Gonzaga tocadas nas onipresentes emissoras de rádio. Ficamos a par das preocupações com o consumo de água e energia, que precisavam ser racionadas, entre outros aspectos daquela realidade. E é aí que se processa o jogo de aproximações e distanciamentos que em nossa mente, que ajudam a dar sentido e significado ao conhecimento do passado. Em certo sentido, de um presente passado.

Enfim, concluo essas observações com a convicção de que a leitura desses dois textos pode conduzir a uma reflexão muito instigante: a importância da representação do tempo histórico pelos caminhos da narrativa histórica propriamente dita e a tessitura do texto ficcional. Ao comparar essas duas narrativas, confesso que não tive a sensação de ler duas histórias, embora distintas imagens me foram formadas na mente. A reconstituição minuciosa e apaixonada de “Anatomia de uma derrota” me causou a sensação de viver um amplo presente. Na fantasia da viagem de Paulo, experienciei a dissecação de sua alma; a anatomia de seus sentimentos me sendo exposta. Em ambas, fui contagiado pela presença de muitos passados. Todos agora presentes em minha memória.

Professor Josemar de Medeiros Cruz

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