Anatomia do tempo
julho 24, 2020
 
 
Encerro com a publicação desse texto, o ciclo de postagens dedicado a investigação em torno do curta-metragem “Barbosa” como objeto de mediação no ensino de História. Especialmente com a finalidade de produzirmos uma reflexão de natureza histórica nesses tempos de EAD. Desde já, convido os leitores, caso não o tenham feito, a ler as outras publicações que se encontram nas demais seções do site, “Filmes”, “Planejando com cinema” e “Textos e telas”, que pontuaram as etapas de concepção e preparação dessa experiência pedagógica, que acabou tendo que se adaptar as circunstâncias, mas que, por isso mesmo, mostrou novos caminhos e instigantes desafios.
 

Começo, à propósito, por esse último aspecto. Entretanto, ressalto que evitarei nesse relato a exposição de dados sobre o filme e/ou os textos que serviram como base para sua realização, assim como os elementos contextuais e problematizações em torno dos eventos neles retratados, pelo fato de ter feito isso nas outras postagens. Dedicarei atenção aqui a forma como utilizei o filme com os alunos nessa circunstância atípica de isolamento social. Confesso, aliás, que quando vi pela primeira vez a obra, concebi todo o desenvolvimento desse trabalho levando em conta a realidade do ensino convencional/presencial. Essas adaptações, como disse na abertura, acabaram repercutindo positivamente.

Percebendo que a pandemia não daria trégua em nosso país nas semanas ou meses seguintes, propus aos colegas do grupo de estudos Planejando com cinema, um direcionamento das discussões em torno do uso do filme “Barbosa” que contemplasse essa realidade do ensino à distância. Nosso encontro, ocorrido no dia 14 de julho, teve como tema “Cinema e escola em tempos de EAD”. Diferentemente de outras oportunidades, não pudemos ver o filme juntos. Sendo assim, experenciamos um pouco daquilo que iríamos sugerir aos nossos alunos. Ou seja, vimos e analisamos o filme ao longo da semana, e durante o debate, apresentamos nossas propostas para sua aplicação pedagógica à luz dos preceitos do ensino híbrido e das metodologias ativas.

 
 

A partir das ideias discutidas no grupo, revi o filme algumas vezes. Dediquei-me também a leitura do livro e do conto nos quais o curta foi baseado, o que resultou na produção de um artigo (publicado aqui no site) em que apresentei a história do filme, os possíveis diálogos que ele permite instigar como objeto mediador, e sugeri alguns direcionamentos pedagógicos considerando várias áreas de conhecimento e componentes curriculares. Creio que possa servir como ponto de partida para o uso do filme, inclusive, de forma intercomponente. Foi justamente pensando nisso que considerei necessária a análise dos textos-base para a produção do roteiro. No caso, o conto “O dia em que o Brasil perdeu a Copa” e o livro “Anatomia de uma derrota”, ambos escritos pelo jornalista Paulo Perdigão. Na seção “Textos e telas”, publiquei uma resenha dessas obras, destacando seu uso em conjunto com o filme, seguindo especialmente as orientações da Base Nacional Comum Curricular.

Tudo discutido e planejado, chegou a hora de colocar as ideias em prática. No meu caso em particular, trabalhei o filme “Barbosa” com sete turmas do 9.º ano da Escola Maria Heraclides Lucena Miranda, pertencente a rede municipal de Brejo Santo, interior do Ceará. E como estamos ainda afastados do contato presencial com os alunos, toda a estratégia foi pensada contando com a utilização de ferramentas digitais de interação. No caso dessa primeira experiência didático-pedagógica com “Barbosa”, usei especialmente o Google forms, Whatsapp, Youtube, Google Sala de aula e a plataforma de podcast Anchor.

Nas primeiras semanas de agosto, discuti com meus alunos do 9º ano o período de transição política no Brasil , que saia da ditadura do Estado Novo, comandado por Getúlio Vargas e começava o governo Dutra. É neste exato entroncamento temporal, em que logo tivemos a volta de Vargas à presidência, que se passa a maior parte do filme em questão. É mais precisamente no ano de 1950, em 16 de julho, que assistimos o desenrolar da trama, que conta a aventura do personagem Paulo, que viaja no tempo para mudar o resultado da Copa do mundo de futebol que estava sendo aqui realizada. Seu objetivo era impedir que o Uruguai marcasse o gol de virada que sacramentou a tragédia popularmente conhecida como maracanazo.

 

Meu objetivo como professor foi dar início ao processo de sensibilização, em que nos sentíssemos motivados a pensar nas relações entre aquela época (o início dos anos 1950) e o tempo em que vivemos, e aproveitamos a viagem de Paulo para fazer isso. A partir daí, traçamos uma série de paralelos entre esses tempos, que, como depois concluímos, estavam imbuídos de passados, presentes e futuros. Todavia, além de ser um mero ponto de instigância ou de predição (o que não seria pouca coisa), aproveitamos essa viagem no tempo para pensarmos sobre nossa relação pessoal e social com o passado, e até mesmo a presença desse passado em nossas existências.

A primeira etapa, portanto, foi o envio do link para uma videoaula que gravei, com o título de “A máquina do tempo”. Na verdade, uma pequena apresentação, que servisse também como ponto de instigância, já começando a relacionar o ambiente explorado na narrativa ao contexto histórico que iríamos estudar. Após a orientação para que eles vissem a videoaula, passei o link para que pudessem ver o filme, disponibilizado na plataforma Youtube.

 
 
Ao final da videoaula, eu pedi para que respondessem a três questionamentos, que tinham o fito de provocar uma reflexão histórica, a partir da maneira como nos relacionamos com o passado. A ideia era de que, a partir dessas respostas, pudesse discutir a própria natureza do fazer histórico, na medida em que pudéssemos entrar em questões que envolvem o fazer e o escrever a história. De que maneira podemos interferir não nos acontecimentos (ou eventos) do passado, mas no seu registro, no passado que será por nós conhecido, portanto. Foram esses os cards disponibilizados aos alunos com os questionamentos:
 
 
 
Essas questões foram respondidos através de formulários criados na ferramenta Google Forms e administrados através do ambiente digital Google Sala de aula. Ao todo, 147 alunos responderam a tarefa, o que me permitiu uma excelente amostragem para análise. Abaixo, um gráfico gerado pelo Google Forms com a distribuição das respostas por turma:
 
 

Muitos desses 147 alunos interagiram comigo ao longo da semana que foi de 04 a 11 de agosto, através do Whatsapp, para conversarmos sobre suas impressões gerais geradas pelo filme. Nesse caso, foi permitido a mim perceber como esse recurso se mostrou um instrumento eficaz no sentido de provocar reflexões. Enfim, de posse dos formulários, procedi a leitura atenta de todos eles. Separei por blocos de perguntas e respostas e isolei as que possuíam características comuns. Meu intuito foi preparar um feedback para os alunos, não corrigindo, mas fazendo comentários, pontuando alguns aspectos das colocações deles, tentando aprofundar as discussões a partir das ideias e pontos de vista que foram lançados.

Embora admita que nessa primeira experiência, eu gostaria de ter tido mais tempo, e até mesmo realizado um momento de interação online, o que pretendo fazer em outra oportunidade, considero um passo efetivo no sentido de introduzir questões em torno da natureza do conhecimento histórico com os alunos. A modalidade de educação à distância, cada vez mais significativa no Brasil por vários motivos, entre eles o avanço dos ambientes digitais de aprendizagem, ainda é predominante entre o público adulto. Acredito que a pandemia de 2020 provocará uma importante mudança nesse sentido. Herdaremos uma visão mais integradora no sentido do uso de novas tecnologias na Educação Básica para um público mais jovem. E essa experiência me instigou a prosseguir o trabalho.

De um ponto de vista mais didático-pedagógico, ressalto uma maior amplitude de participação dos alunos. Pois, em salas de aula presenciais, embora não neguemos a importância da interatividade, do contato presencial para a formação social do ser humano; por timidez ou por qualquer outra limitação, muitos acabam não opinando nas discussões. Vários deles têm mais facilidade para escrever, e acabam por utilizar essas plataformas para se expressar. E não esqueçamos, embora realmente não queira discutir essa questão aqui, nesse mundo de redes sociais e um sem número de ambientes “virtuais” de comunicação, a própria noção de presencialidade e virtualidade tende a ser revista.

A seguir , trago uma pequena amostragem das respostas dos alunos, guardando, é claro, o sigilo dos autores. A primeira pergunta era “Em que sentido poderíamos considerar a história uma máquina do tempo?” Vejamos algumas das respostas:

No sentido de que, a cada aula, indiretamente, viajamos para um certo período histórico onde conhecemos pessoas, lugares, fatos, mitos, e tudo isso é uma viagem no tempo, onde a máquina é o nosso cérebro, onde imaginamos e guardamos os frutos da viagem

Aluno 01, 9.º Ano C

Podemos considerar a história uma máquina do tempo a partir do momento que através dela nós possamos olhar para o passado e quem sabe corrigir erros que cometemos com base em fatos passados.

Aluno 02, 9º Ano A

A história é uma forma de ver/imaginar através da leitura, como as coisas devem ter sido. Já que não podemos ir ao passado e presenciar, ver com nossos próprios olhos, a história nos dá a chance de pelo menos entender e imaginar como foi viver e enfrentar as coisas que aconteceram.

Aluna 01, 9º Ano A

 
A segunda pergunta foi “O que aprendemos quando estudamos História?” Nesse caso pude ver como ainda está bem marcada a ideia de que o estudo da História se relaciona diretamente com o objetivo de conhecer o passado. Alguns alunos responderam apenas assim, ou seja, “conhecer o passado”. Entretanto, muitos outros consideraram a potência do estudo da História como sendo a oportunidade de estabelecermos uma relação com o presente. O aprendizado de algo que surtisse um efeito nas nossas ações. Vejamos algumas respostas nesse sentido:
Aprendemos sobre todas as coisas que aconteceram no passado, estudamos sobre elas e aprendemos sobre o porquê de terem acontecido e como aconteceram, para que possamos entender o porquê o nosso futuro é assim.

Aluna 02, 9º Ano A

Nós aprendemos os fatores acontecidos no passado, que fizeram com que tudo que nós temos hoje, fosse possível de existir.

Aluno 03, 9º Ano A

Um turbilhão de coisas, aprendemos sobre civilizações, culturas, crenças, religiões, métodos medicinais, erros e acertos. Aprendemos sobre feitos que aconteceram quando nós não éramos nascidos. Sobre o surgimento de doenças e sobre as curas.

Aluna 03, 9º Ano B

Bom, na minha opinião a gente aprende a refletir sobre os acontecimentos que já aconteceram na vida das pessoas, sejam elas burguesas ou plebeias. Poder até sentir o que elas sentiram naquela época. Então, a gente estuda essa matéria não só para saber os acontecimentos e sim refletir sobre eles.

Aluna 04, 9º Ano G

Ela investiga o que os homens fizeram, pensaram e sentiram enquanto seres sociais. Nesse sentido, o conhecimento histórico ajuda na compreensão do homem enquanto ser que constrói seu tempo.

Aluna 05, 9º Ano G

 

No último questionamento, desafiei os alunos a se envolver em um exercício de imaginação: propus que se colocassem na posição do personagem principal do filme e pudessem viajar para o passado, “o que mudariam e porquê?” O objetivo foi estimulá-los a pensar na relação causa-efeito na história, no processo. Confesso que esse tipo de raciocínio é muito caro a mim. Fui bastante influenciado a pensar nisso quando vi, durante a adolescência, com a idade dos meus alunos, o filme “De volta para o futuro” (há uma resenha dele aqui no site). No entanto, meu objetivo era também estimulá-los a considerar a própria escrita da história. A diferença entre fazer parte da história e escrever a história.

A BNCC trata disso na seção dedicada ao Ensino Fundamental, quando destaca que, na busca da autonomia do aluno, deve se considerar o “reconhecimento das bases epistemológicas da História, a saber: a natureza compartilhada do sujeito e do objeto de conhecimento, o conceito de tempo histórico em seus diferentes ritmos e durações, a concepção de documento como suporte das relações sociais, as várias linguagens por meio das quais o ser humano se apropria do mundo. Enfim, percepções capazes de responder aos desafios da prática historiadora presente dentro e fora da sala de aula.” (BNCC: 2018, p. 401).

Ao se imaginarem em uma máquina do tempo, de volta para o passado, percebi que muitas respostas trabalharam o ponto de vista individual, ressaltando coisas que gostariam de mudar em suas vidas, não necessariamente relacionando esses acontecimentos ao conjunto de outros eventos. Porém, muitos trataram de aspectos coletivos, que envolviam repercussões históricas mais coletivas. Mudariam, portanto, algo que afetaria a vida dos outros. Seguem abaixo algumas das respostas para esse exercício de imaginação que propus:

Pessoalmente falando, eu não mudaria nada sobre o meu passado, aconteceu algumas coisas ruins, mais graças a tudo isso eu me tornei a pessoa que sou hoje. Mas historicamente falando, eu mudaria a forma como as pessoas viam uns aos outros. Afinal, eu não vejo motivo para uma pessoa ser inferior a mim só pela cor ou religião, muitas pessoas negras, judaicas e até mulheres morreram e foram torturadas, apenas por verem eles como inferiores, se isso não tivesse acontecido quem sabe o quão incríveis eles podiam ter si tornado, um deles poderia ter sido eleitos(as) presidentes e salvado milhões de pessoas da fome, ou um deles podia ter tido um filho ou neto que hoje seria o responsável por achar a cura para esse vírus. Quem sabe quantas coisas poderiam ter sido evitadas se o nazismo, machismo e racismo nunca tivessem existido? Infelizmente isso é algo que nunca poderemos saber.

Aluna 08, 9º Ano A

Talvez eu ficasse na dúvida, pois tudo que vivi no meu passado me tornou a pessoa que sou hoje. Mais tirando isso, acho que eu tentaria apagar todos os momentos ruins, de aflição e de desentendimento que passei.

Aluna 06, 9º Ano A

Mudaria a forma como as pessoas pensavam antigamente, principalmente em relação ao racismo. Odiar uma pessoa apenas pela cor é muito errado, afinal somos todos iguais e não devemos tratar os outros mal, por qualquer que seja seu erro, perdoar e respeitar é essencial.

Aluna 07, 9º Ano A

Pesquisaria e impediria várias pessoas que sofreram tragédias, como o voo da Chapecoense e dos mamonas assassinas ou do Kobe Bryant etc.

Aluno 04, 9º Ano B

Não mudaria nada, levo o passado como um aprendizado.

Aluna 09, 9º Ano F

Meus comentários feitos a partir das respostas dos alunos foram disponibilizados por meio da plataforma de podcast Anchor, na qual criei o + História, com o objetivo de, ao longo desse período de isolamento social, prolongar o debate a partir da exploração didática das opiniões dos alunos. O link para o acesso desse episódio, que tem o mesmo título da videoaula, é https://anchor.fm/josemardemedeiroscruz/episodes/A-mquina-do-tempo-ehqirg/a-a2stuul

Ao final desse breve relato, lembro que a finalidade da seção do site “O tempo no cinema” é justamente compartilhar as experiências realizadas com os alunos a partir do uso de filmes nas aulas de História. Vejo esse canal de comunicação, sobretudo como uma oportunidade de levantar um debate. Reconheço que aqui temos apenas os primeiros passos de um longo percurso. Principalmente se levarmos em conta algumas limitações do tempo presente. Espero no futuro continuar trabalhando com o filme “Barbosa”, pois certamente outros elementos poderão ser aproveitados. Inclusive com a ajuda de colegas, professores de História. Perguntas que podiam ser feitas aos alunos, aspectos do enredo do filme que podiam ser melhor explorados etc. Por isso, agradeço de antemão os comentários construtivos que espero, sejam feitos a partir dessa postagem.

Reitero que esse texto é apenas a quarta parte de um processo, que começou com o estudo detido do curta-metragem, resultando no texto “A máquina do tempo”, publicada na seção “Filmes”; a leitura dos textos que serviram de base para o filme, que gerou o artigo “Anatomia do tempo”, da seção “Textos e telas”; além do debate que travamos do grupo Planejando com cinema, cujo relato também consta aqui no site. Tudo isso resultou nessa primeira atividade prática com os alunos.

O objetivo do site é servir a uma ação reflexiva em torno dos usos de filmes para o desenvolvimento do raciocínio histórico do aluno à luz do reconhecimento da experiência temporal. Aprender a operar narrativamente essa relação entre passado, presente e futuro é se apropriar da ferramenta essencial para estudar e compreender a história, a partir da compreensão de como o tempo é significado e representado nessas narrativas. Afinal, narrar a história é, acima de tudo, representar a passagem do tempo, dar-lhe um sentido. Sendo assim, qual o sentido que o passado tinha para o personagem Paulo no filme “Barbosa”? Essa é uma questão que não fiz diretamente para os alunos. Todavia, através dela viajamos e nos colocamos como personagens de um enredo que considera constantemente essa pergunta.

Professor Josemar de Medeiros Cruz
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