Do ouro à água, entre outras mudanças (e permanências)
janeiro 25, 2020
Temporada 2020
março 31, 2020
 

Ouvindo os filmes


O cinema é uma arte audiovisual. Isto posto, a própria ideia de um cinema mudo, ou não sonoro, já sugere certa contradição. De fato, essa impressão de que teríamos tido uma espécie de pré-história dos filmes, em que não se ouvia som associado a imagem, não passa de uma mera simplificação. Inclusive, contrária a própria natureza daquilo que Ricciotto Canudo definiu como “sétima arte” em um manifesto publicado há quase 100 anos. Assim, o cinema nasceu como herdeiro de outras expressões.

Embora já nas primeiras décadas, procurasse se desvincular da impressão de ser tão somente um mosaico formado a partir de outras manifestações, e afirmar-se como um veículo singular de produção de sentidos e representações do mundo, o filme sempre fez uso de elementos e técnicas da pintura, da arquitetura e da música. Se o cinema plenamente sonorizado, em que se pode ouvir os atores falando em cena a partir de modernos meios de captação, com suas vozes integradas a imagem, tem como precursor o filme “O cantor de jazz”, de 1927; já diante das primeiras plateias que adentraram as salas de exibição para ver as “figuras se movendo”, o som já se fazia presente.

Se não ainda gravado na própria película, e muitas vezes tão somente para abafar o ruído perturbador da máquina de projeção, o fato é que logo se percebeu que não era possível, muito menos desejável, separar som e imagem, pois é assim que nossos sentidos captam o “mundo real”. Ver e ouvir complementam-se, e, com o passar dos anos, o elemento sonoro ganha um papel de acentuação dramática, pontuando a ação e as emoções do espectador. Enfim, o filme torna-se som, imagem e movimento.
 
Introduzo brevemente essa questão porque muitos trabalhos que promovem um diálogo entre cinema e história, e mais especialmente o ensino de História, dão um destaque quase exclusivo a imagem, e desprezam o uso do som como um aspecto fundamental na composição do sentido das cenas. E isso é quase uma resposta natural a força que as imagens exercem sobre as nossas percepções. O efeito catártico dos planos, especialmente em montagens que cada vez mais destacam a rapidez da ação, tornam a banda sonora um adereço ao conjunto do filme, dissolvido no processamento dos cortes.

Entretanto, a inserção do filme na aprendizagem de História não deve abrir mão de pensar os usos do som, seja o sound design, os diversos efeitos produzidos em mesas de edição, ou mesmo do score, a partir do áudio que chamamos comumente de soundtrack ou trilha sonora, em português. Assim como o background sonoro, um trabalho de ambiência que instiga a percepção do contexto e do espaço onde se desenvolvem a história.

A própria cultura cinematográfica já nos habilita a perceber essa intenção, pois algumas associações vão sendo estabelecidas. Como exemplo, temos as bombásticas trilhas dos filmes épicos hollywoodianos, as melodias dos westerns ou da pulsação rítmica que conduz o espectador durante os filmes de terror e suspense. Em outros casos, nos chamados filmes ambientados historicamente, é comum o uso de músicas do período que está sendo representado. Sendo assim, uma história que se passa na década de 1950, nos Estados Unidos, é provável que ouçamos muito rock n’ roll; enquanto o madrigal poderá ser incorporado à representação do final do medievo europeu.

 
 
 
Além da óbvia referência à origem da composição e seu encaixe na narrativa, a música oferece uma série de outras possibilidades para que o tempo seja percebido em um filme. Tanto como experiência quanto como expectativa. Senão, vejamos: antes de Michael Myers, assassino serial de Halloween faça mais uma vítima, ouvimos a assombrosa e minimalista composição de John Carpenter nos avisar. Sabemos que algo vai acontecer porque essa música já contextualizou um evento semelhante no passado, e está nos avisando que algo ocorrerá novamente. Nesse caso, a música nos conduz à formação de um arco temporal, como quando uma determinada pessoa entra em cena. A música tema do personagem se faz presente e nossa memória ativa as informações sobre ele, quem é, o que fez, o que pode vir a fazer.

Como já foi dito, a música também marca o ritmo da cena, acelera e desacelera a ação. Às vezes, se torna quase indissociável da imagem, como na icônica cena do chuveiro de Psicose, de Alfred Hitchcock, quando o próprio som parece ser a faca que corta Marion Crane (Janet Leigh). Aliás, quando definimos o cinema como imagem, som e movimento, essa cena parece ser um exemplo perfeito disso, pois a impressão do tempo da cena é determinada pelo conjunto desses três elementos.

 
 
Como a música pode ser associada à cultura, a maneira como identificamos culturalmente uma sociedade em um dado contexto histórico, muitos filmes se utilizam desse artifício. Dessa forma, temos as ambientações sonoras típicas de uma vida rural, mais tranquila; enquanto o frenesi dos grandes centros urbanos é potencializado pelo impacto de uma trilha mais vigorosa, como se para aumentar a sensação de estresse mental e físico. No chamado cinema distópico, temos geralmente a peculiar combinação de elementos de tensão e torpor, reforçando um imaginário de pesadelo, que remete ao medo do futuro. Nesse caso, não nos avisando de um iminente ataque, mas causando uma incômoda antecipação.

A ideia dessa postagem é precisamente chamar a atenção para a importância do elemento sonoro na análise do filme. Se vamos usar o cinema em sala de aula, não devemos esquecer que ele é uma arte audiovisual. Não podemos nos prender apenas à imagem e esquecer que o que vemos é um conjunto de várias ferramentas que se somam para criar um sentido. Inclusive conduzindo à impressões sobre a passagem do tempo, ou usando essa dinâmica de interação entre experiência e expectativa através da ambientação sonora para complementar e/ou desconstruir significados.

 
Sugiro como leitura introdutória ao uso do som no cinema o livro “A música no filme”, do músico, compositor e produtor de áudio Tony Burchmans. De fácil leitura, além de percorrer historicamente a importância da música para a sétima arte, e destacar sobretudo a obra de alguns compositores seminais, o autor discute os principais conceitos e apresenta as várias funções da música para a narrativa, além de destacar as etapas do processo de utilização do som nos filmes, desde a captação à mixagem.

Ademais, procuro reforçar nas resenhas dos filmes que publico aqui no site, a necessidade de educar o nosso olhar para perceber o potencial do cinema no desenvolvimento de conceitos e procedimentos de formatação do raciocínio temporal, e dessa forma, conduzir, a partir do uso de filmes em sala de aula, o raciocínio histórico dos alunos. Façamos um exercício complementar, então. Eduquemos nossos ouvidos para esse elemento tão significativo, o som, que ajuda a contar histórias, assim como contribui para que demos sentido a elas. Esse livro pode ser um passo interessante nessa caminhada.

Referência da obra:

BERCHMANS, Tony. A música do filme: tudo o que você gostaria de saber sobre a música de cinema. São Paulo: Escrituras, 2006.

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