Os tempos da Vida Maria
janeiro 24, 2020
Ouvindo os filmes
março 18, 2020
 

Do ouro à água, entre outras mudanças (e permanências)


 
Na postagem anterior, demonstrei como o filme “Vida Maria” me possibilitou investigar a competência narrativa dos alunos. Através da análise das ações e dos tempos apresentados no enredo, procuramos relacionar a personagem Maria José à vivência dos estudantes, e construir uma compreensão do tempo a partir do agenciamento das relações entre passado, presente e futuro, com base nos conceitos de experiência e expectativa.

Com o intuito de avançar no trabalho de constituição de um letramento histórico, percebi que, além de reconhecer as experiências e expectativas como manifestações da presença do tempo em nossas vidas, a própria construção do conhecimento histórico mobiliza a coexistência de elementos do passado, do presente e do futuro. A história, portanto, é tecida a partir de uma narrativa que entrelaça esses tempos, dando um sentido a essa representação. Sendo assim, a aprendizagem histórica pressupõe a compreensão de como esses elementos são organizados narrativamente.
 
 
Ao se estudar história, aprende-se a lidar com uma cultura histórica que nos rodeia. Em um mundo permeado por narrativas, a competência de compreender como se dá a relação de sentidos produzidos por elas é uma condição sine qua non para afirmar a autonomia de pensamento. As narrativas históricas articulam a continuidade/ descontinuidade dos fenômenos sociais, e o estudante precisa ser instigado a perceber dentro dessas narrativas uma estrutura de significação.

No presente texto, vou expor como se deu o trabalho com o filme “Conflito das águas”. A partir da narrativa nele constituída, que uniu tempos distantes, propus aos alunos o desafio de observar as mudanças e as permanências na história, no esforço de continuarmos a pensar historicamente. Aproveito de antemão, para convidar o leitor a procurar aqui mesmo no site, a análise que fiz desse filme. Nela, abordo em detalhes a representação do tempo na obra, e apresento sugestões para seu uso em sala de aula.

Apenas à título de resumo, o enredo trata da chegada de uma equipe de filmagens vinda da Espanha, que aporta na Bolívia para a realização de um filme sobre o papel de Cristóvão Colombo e dos padres jesuítas na colonização da América, em especial, o tratamento dispensado aos povos nativos. Porém, enquanto seguem os trabalhos, explode uma revolta popular devido ao problema de parte da população dos arredores de Cochabamba, que está encontrando dificuldades de acesso a água.
 
O objetivo claramente exposto no filme, é de trabalhar a relação entre os acontecimentos do período colonial e os que se deram quase cinco séculos depois, que aliás também são baseados em fatos reais. Eventos ocorridos, portanto, no mesmo espaço, mas num tempo muito distinto. Todavia, as circunstâncias apresentadas no roteiro, procuram evidenciar as des(continuidades) da história. Ressaltando mudanças e permanências, o filme serve como um exercício de reflexão sobre como a história é, na verdade, formada por diversos estratos de tempo.

Logo após a exibição, promovi um debate a partir de perguntas norteadoras: 1. De que tempo trata o filme? 2. Quais são as mudanças e as permanências observadas em “Conflito das águas”? 3. Que elementos do roteiro permitem perceber as comparações entre os tempos históricos? 4. De que maneira o personagem Daniel é usado para relacionar passado e presente? Farei abaixo um pequeno relato da discussão que esses pontos de instigância provocaram.

De uma maneira geral, o objetivo desses questionamentos era conduzir o aluno a perceber que as narrativas históricas são construções que tentam, por natureza, aproximar eventos em distintos tempos. É preciso que aluno seja estimulado a, diante de um conteúdo, reconhecer a experiência histórica e ser capaz também de significar essa experiência levando em consideração sua subjetividade, quando efetivamente se produz uma orientação. Isto posto, já na resposta da primeira pergunta, “de que tempo trata o filme?” pude perceber o impacto positivo de todas as discussões que realizamos nos encontros anteriores, no sentido de provocar uma reflexão sobre como não é possível definir a existência de apenas um tempo na construção da narrativa.

Ver os índios em seu “estado natural” pode ter levado uma das alunas a afirmar de prontidão que o tempo do qual tratava o filme era o passado, pois mostrava o tempo da chegada dos espanhóis na América. No entanto, foi acrescentado que poderia ser o presente também, já que o filme mostrava a disputa pela água. Chamei a atenção de todos para um detalhe importante: os dois eventos, tanto a chegada dos espanhóis na América como a “Guerra da Água”, eram episódios do passado, só que este último tratava de um acontecimento bem mais recente, mas mesmo assim era um passado. Um dos participantes ponderou que a intenção de quem escreveu o filme era justamente demonstrar que muitos acontecimentos dos passado, assemelham-se com o tempo atual. Então, perguntei qual era o tempo que predominava: “Lembrando aquilo que vocês acabaram de assistir, a impressão maior foi de ter visto o passado, o presente ou o futuro?”

Segundo a maioria, o filme quis mostrar que as coisas continuam acontecendo como no passado. Pedi para que explicassem melhor o que exatamente continuava como antes. Segundo disseram, é principalmente a continuidade da exploração dos índios. Ou seja, quando os portugueses chegaram aqui eles queriam o ouro, agora as empresas querem a água. Como a discussão estava sendo direcionada para essa relação entre o passado e presente, resolvi lançar uma pergunta provocativa: “e o futuro, aparece no filme de alguma maneira?” Todos responderam que não, afirmaram que a intenção dos realizadores eram mostrar que apesar do mundo ter mudado muito ao longo de vários séculos, algumas características sociais continuaram existindo, como as pessoas que tem mais poder e dinheiro querendo explorar os outros. Então resolvi mudar um pouco a pergunta: “mas de alguma forma, ver esse filme pode nos fazer pensar no futuro?”

 
 
Segundo uma aluna, essas coisas vão continuar acontecendo no futuro. O que o filme fez foi mostrar a repetição da exploração, e que essas coisas provavelmente vão continuar existindo. Já outro aluno achou que o filme foi feito para mostrar que quando as pessoas reagem, podem mudar o mundo, pois os índios que lutaram pela água, conseguiram expulsar a empresa e puderam ter a água mais barata. A partir daí, enveredamos o debate para esse aspecto. O filme, dessa forma, também estava relacionado com o futuro porque ele serve de alerta. Reforçando a colocação anterior, para o mesmo aluno as pessoas deveriam se preocupar com a questão da água, e que guerras podem até acontecer por causa disso. Pois assim como houve muitos conflitos por causa do ouro, agora e no futuro seria pela água, como se a água fosse o ouro da vez.

Percebi que havia uma salutar dificuldade em definir a predominância do tempo na narrativa. Então perguntei: “na opinião de vocês, a diretora do filme quis falar sobre que evento principalmente, a Guerra da água ou a colonização da América?” Sintetizando as respostas, os alunos entenderam que o filme procurou fazer uma comparação entre esses dois fatos, e de alguma forma, também falar sobre o que poderia acontecer no futuro com base naquilo que aconteceu no passado. Prontamente, foi colocado que no filme os bolivianos conseguiram impedir a empresa de explorar a água, o que supõe a ideia de que podemos mudar o futuro. O que nesse caso seria uma permanência. Então, perguntei: quais as outras mudanças e permanências observadas no filme?

Foram várias as situações percebidas, destacando especialmente as permanências, como no caso dos índios que serviam aos colonizadores e agora serviram as mesas nos restaurantes. Também o fato de, como na época dos primeiros contatos com os colonizadores, nada era perguntado aos índios, como no momento em que estão fazendo o filme. Não queriam saber se era daquela forma que queriam ser retratados. Como foi lembrado por um dos participantes, não tinham perguntado também ais índios se eles tinham religião.

Questionei por que aparentemente foi bem mais fácil para eles perceberem as permanências e não tanto as alteridades entre as duas épocas mostradas no filme. Houve uma certa ênfase na resposta, onde procuraram demonstrar que, de fato muita coisa mudou mesmo, mas no que se refere a situação dos índios, não havia tanta mudança. Procurei levantar outro debate importante, que envolve o letramento histórico. Talvez o interesse dos produtores do filme, salientei, fosse justamente passar essa impressão, pois isso se encaixa com a proposta do enredo. É preciso estar atento as comparações, e como essas comparações são feitas quando lemos um texto de história, ou assistimos a um filme, pois há uma intenção de que entendamos as coisas de uma certa maneira.

Para um dos alunos, a grande diferença entre as duas situações mostradas no filme foi a vitória dos índios na questão que envolveu o aumento do preço da água, como se, segundo ele, os índios não fossem mais ingênuos. Procurei salientar que tal situação poderia ser entendida como uma singularidade, pois o fato de saberem o que aconteceu antes, tornam-nos diferentes dos outros. Pois essa consciência pode direcionar nossas ações. Mas que devemos ter cuidado quando baseamos nossa opinião apenas nas informações que nos são fornecidas por um dos envolvidos. A maior parte do conhecimento que temos sobre os índios que viviam na América no período da colonização foram produzidas pelos colonizadores. Então, essa visão de índios preguiçosos ou ingênuos é resultado da forma como estudamos o seu passado.
 
 
No terceiro item, “que elementos do roteiro permitem perceber as comparações entre tempos Históricos?”, procurei investigar se eles, durante a projeção do filme, estavam atentos aos aspectos da obra que salientavam essa comparação entre o passado e o “presente”. Ou seja, que recursos os autores responsáveis pelo roteiro do filme usaram para que o público fosse levado a comparar os eventos retratados, e talvez até mesmo o presente vivido pelo espectador. Uma das alunas ressaltou que havia muita semelhança da população da Bolívia com os índios, pois eram descendentes deles. E que os índios também resistiram, mas não tinham armas suficientes para derrotar os espanhóis. Que, como foi dito antes, havia uma relação entre o ouro e a água, e que a cena que mais lhe impressionou foi quando a equipe de filmagem colocou os índios para fazerem o serviço mais pesado, como montar o cenário com a imensa cruz que deveria ser montada e causou riscos aos bolivianos.

Um colega acrescentou que o fato do filme ter mostrado o passado e o presente, seria uma forma de nos fazer pensar na relação que um tempo tem com o outro. Segundo ele, o filme relacionou momentos atuais com outro tempo. Assim, leva as pessoas do presente para o passado e do passado para o presente., como se quisesse nos mostrar que o tempo vai passando, mas muitas coisas continuam como eram. Lembramos que no começo do filme era um helicóptero que trazia a cruz de madeira, coisa que no passado não existia.
 
 
Após essa fala, uma aluna comentou que sempre existiram conflitos, como diz no nome do filme, só o que muda é o figurino. Achei interessante essa analogia, e complementei dizendo que esse figurino do qual ela fala pode ser o contexto histórico. Cada período tem suas caraterísticas (sua roupagem), por isso, nenhum conflito vai ser igual ao outro. Quando comparamos, é porque precisamos de uma referência para entender outro evento, partindo de algo que já conseguimos explicar de certa forma. Assim como, quando assistimos a muitos filmes policiais, já sabemos mais ou menos para onde a trama pode estar seguindo. Quando pensamos num fato para compararmos com outro, geralmente é porque queremos ter uma ideia de como essa história irá terminar.

Uma observação nos levou a última questão: o fato do mesmo ator ser usado como protagonista das duas situações/tempos. Perguntei porque eles achavam que havia acontecido isso. Disseram que sempre há uma pessoa que lidera as outras. Mas insisti, mostrando que era o mesmo ator. Por quê? Após uma reflexão, entendemos que assim ficaria mais fácil para o espectador compreender a mensagem do filme. O mesmo ator foi usado nas duas situações, para reforçar a similaridade entre os eventos relacionados ao processo de colonização e as lutas pelo acesso à água. Além de ser o organizador da resistência contra o corte da água, é um personagem muito importante no filme que está sendo produzido, é como se ele fosse usado para mostrar como os índios lutavam por seus direitos antigamente.
 
 
Ocorreu-me perguntar, ao final da conversa: “gostaria que vocês me dissessem uma coisa: se fosse possível dizer aquilo que de mais significativo foi aprendido durante esses encontros, o que seria?” Para um dos presentes, sempre vivemos, ao mesmo tempo, presente, passado e futuro. Nossa vida carrega o passado pensando no futuro. Fico na torcida, para que esses debates a partir dos filmes possam ser transportados para toda e qualquer relação dos alunos com as narrativas históricas com as quais ainda manterão contato ao longo de suas vidas. Torço para que eles pensem historicamente sobre elas.
 
Comentários