Pois bem, a partir do relato feito por Rüsen, resumido acima, pode-se imaginar que, caso alguém decidisse ajudar uma pessoa que admitiu ter cometido assassinato, sob qualquer circunstância, só poderia ter a sua atitude compreendida caso soubéssemos o que no passado germinou tal comprometimento. Com absoluta clareza, o autor diz que a função da consciência histórica é “ajudar-nos a compreender a realidade passada para compreender a realidade presente” . Mas como somos seres humanos sempre vivendo no presente, é a partir deste que vamos tentar compreender o passado, o que demanda uma cuidadosa operação intelectual que precisa ser orientada, função primordial de uma aula de História. Compreender o passado a partir de questões levantadas no presente, com vistas ao futuro, é um dos elementos pedagógicos essenciais no ensino de História, contribuindo para se pensar historicamente, pois “a história é o espelho da realidade passada na qual o presente aponta para aprender algo sobre o seu futuro.” Bem, feitas essas considerações, segue um resumo de nosso debate.
Ao final da exibição, como já havia ocorrido em outros eventos em que usei esse filme, percebi que os olhos mareados dos alunos eram um claro sinal de empatia com o enredo. A ideia de que Maria José era um pouco cada um deles, deixou de ser apenas uma suposição minha. Apesar de todo o processo de diminuição da faixa etária dos alunos da EJA, e considerando que muitos egressos da escola regular terem abandonado os estudos por motivos alheios a condições econômicas adversas, o público dessa modalidade ainda tem sua educação formal interrompida de maneira traumática. O que sem sombra de dúvida, assemelha-se em maior ou menor grau a história da personagem principal do enredo.
Após um breve instante em que todos afirmaram ter gostado bastante da obra, comecei a fazer as perguntas que iriam direcionar a investigação a que me propus. Classifiquei esses questionamentos em dois blocos: no primeiro, meu objetivo seria identificar e contextualizar os sujeitos, o espaço e o tempo da história; no segundo momento, lançaria algumas perguntas que pudessem suscitar o debate em torno da maneira como eles compreendiam a narrativa a partir do que Rüsen chamou de consciência tradicional, crítica, exemplar e genética. Evidentemente, essas questões acabam por se misturar, pois associações iam sendo feitas entre os dois blocos de perguntas, o que permitiu mais naturalidade e fluência na conversa. Acabou por ser uma maneira mais eficaz, pois percebi que eles participaram mais abertamente.
De antemão, os alunos estabeleceram que Maria José, ao mesmo tempo que uma personagem, é um retrato de várias outras. Mesmo que algumas dessas pessoas não apareçam no filme, tem seus nomes escritos em um caderno, o que fez com que eles as considerassem também como personagens, todas elas ao mesmo tempo em Maria José. Como se as Marias fossem uma personagem só. Perguntei que outras pessoas poderiam ter aparecido no filme, que fizessem parte da vida de Maria José. Eles disseram que algum vizinho, ou até uma professora perguntando se Maria iria para a escola. Mas concluímos que não seria necessário, pois toda a história pode ser compreendida sem eles. Mas que Antônio, seu futuro esposo, provavelmente um vizinho, apareceu na narrativa porque seria importante em um momento seguinte da história da personagem.
Esse foi o ponto de partida para começarmos a relacionar a narrativa do filme a construção do saber histórico. Expliquei que, em um livro de História, não consta todo o passado, mas apenas a parte dele que o autor entende ser necessário para o sentido que quer atribuir aos acontecimentos e a relação entre os fatos e pessoas que viveram no passado, em sua correlação com a contemporaneidade. Essa parte do passado será transformada em uma experiência. Sendo assim, perguntei: Foi possível compreender a vida de Maria José em apenas 9 minutos de filme? Todos disseram que sim, embora tenha sido ressaltado que muitas outras coisas ocorreram e não foram mostradas. Expliquei que não é necessário que saibamos tudo sobre um fato para que possamos compreendê-lo, mas sim, as coisas mais significativas. No entanto, definir o que é mais significativo passa pela subjetividade de quem escreve o relato histórico, aquilo que este precisa ou deseja que saibamos. Perguntei o que eles achavam que era o sentido ou significado da história que havíamos assistido.
A maioria das respostas gravitaram em torno do sofrimento da menina, que não podia estudar porque tinha que ajudar a mãe, além da falta de oportunidade para as pessoas que vivem na zona rural, afastadas dos grandes centros urbanos. Um dos alunos disse que objetivo era mostrar que a vida das Marias era sempre igual a de suas mães. Perguntei, na sequência, por que isso acontecia. Uma parte respondeu que era assim em todas as famílias, as pessoas não estudavam e as mulheres sempre obedeciam aos maridos. E que as filhas agiam assim, sempre obedientes, porque as suas mães também assim o faziam.
Após debaterem, concluíram que o tema principal era a permanência da dura realidade de gerações que não tinham oportunidades de mudar de vida. Perguntei como eles perceberam isso. Que elementos do enredo mostravam que a vida das marias pareciam sempre igual? Como essa passagem do tempo ia sendo mostrada no filme? Entre outras coisas, chamou atenção o fato de Maria José está ficando velha, tendo um monte de filhos, e no final ficando como a mãe dela. Será que eles conheciam muitas marias como a vista no filme. Responderam que hoje em dia há menos porque as pessoas tem mais oportunidades de estudar. Tem ônibus que passa perto de casa, merenda e farda para os alunos. Tem até livro de graça.
De uma maneira geral, eles acham que a situação mudou, mas muitos ainda tem que trabalhar para ajudar os pais, o que atrapalha os estudos. O fato dos alunos não terem muito tempo para estudar e irem para a escola cansados, faz com que aprendam menos, aprendendo menos, tem pouco estímulo para continuar frequentando a escola, o que acaba por provocar o abandono em alguma das etapas de sua vida escolar. Insisti: “por que existem ainda tantas marias josés?” Essa pergunta já contribuiria no sentido de observar qual o tipo de consciência histórica que eles operavam para explicar uma dada realidade social, reconhecida como um continuidade de outros tempos.
Algumas alternativas foram lançadas, tais como a culpabilidade do governo em especial. Mas também foi ressaltado que os pais muitas vezes não conseguem enxergar que os filhos podem ter um oportunidade que eles não tiveram, e os obrigam a viverem como eles. Questionei se a vida de Maria José havia sido daquela forma por causa da mãe. “O que vocês acham da atitude da mãe da menina quando brigou por ela estar escrevendo seu nome, mandando-a cuidar dos afazeres da casa?” À princípio responderam que ela estava errada, que deveria deixar a menina estudar para não viver como a mãe e as outras marias. Nesse ponto, pude perceber como o diálogo em torno de uma narrativa, conduzida por ângulos diversos, pode ajudar os alunos a raciocinarem historicamente.
Ato contínuo, questionei: “mas porque vocês acham que a Mãe de Maria José agiu daquela maneira?” A maioria disse que era porque havia sido tratada assim e por isso apenas repetia o que sempre aconteceu com ela. Para a maioria, na realidade social e espacial em que a família se encontrava, saber fazer o nome, estudar, poderia oferecer uma falsa impressão a Maria José de que a sua vida pudesse passar por uma transformação de fato, e que depois seria motivo apenas para frustração. Melhor seria, nesse caso, que ela aprendesse a cumprir a lida da roça, pois assim poderia sobreviver e contentar-se mais facilmente com o que era, com o que, de certa forma, nasceu para ser. E isso explicaria o fato das mães dizerem para as filhas que estudar seria uma perda de tempo.
“Então, por esse ângulo, pode-se dizer que as mães agiam de forma correta com as filhas?” Reforcei a pergunta. De uma maneira geral, as respostas gravitaram em torno da proteção a Maria e mesmo o fato de estar repetindo inconscientemente o que ocorreu com ela. Mas, a maioria considerou errada a atitude da mãe, embora não a condenassem. Um dos alunos afirmou que seria preciso que alguma das Marias teria que quebrar esse ciclo, permitindo que a filha fosse estudar.
Entretanto, uma das alunas ponderou, em um depoimento muito interessante, demonstrando aquilo que Rüsen chamou de consciência genética. Disse ela: “hoje, se uma mãe que tem uma filha que estuda e o ônibus passar na frente da escola e a menina ganha tudo para estudar, a mãe não pode fazer isso, mas temos que entender que em outros tempos era diferente. Não se poderia culpar os pais anteriores, que tinham outra mentalidade, pois o mundo era outro.
A partir da opinião dessa aluna, percebemos que o fato dessas mães mostradas no filme serem analfabetas, tornava ainda mais improvável que elas entendessem o papel que a escola podia desempenhar na vida das filhas, pois em um ambiente onde as coisas não mudam muito, imaginar um horizonte melhor do que o que se vive é menos provável. E com o passar do tempo, a filha ia simplesmente repetindo as ações da mãe, e convencendo-se de que seria sempre tudo do mesmo jeito. Desta forma, entre todas as perguntas feitas, “por que a mãe de Maria agia daquela forma?” foi a que permitiu com mais clareza definir como eles entendiam a realidade a partir da consciência histórica. Em síntese, os quatro tipos de repostas proferidas me ajudaram a traçar um quadro de possibilidades diante das tipologias da consciência histórica descritas por Rüsen. Foram elas: 1: porque foi sempre assim que a mulher viveu; 2: porque a mãe fez a mesma coisa com ela; 3: porque ela não entendia as possibilidades de futuro da filha, não via que ela tinha que estudar e não é desculpa a mãe não ter feito algo diferente, pois em algum momento, uma das Marias não deveria repetir a vida de sua mãe; 4: A mãe não tinha culpa, pois agia conforme a realidade do contexto do tempo e do lugar em que vivia, mas hoje a sociedade não aceita mais que as crianças faltem a escola para trabalhar, mesmo que seja para ajudar os pais.
Essas explicações vão ao encontro, nessa ordem, das formas tradicional, exemplar, crítica e genética segundo a tipologia da consciência histórica proposta por Rüsen. De uma forma mais simples de justificar historicamente os acontecimentos, afirmando os mesmos serem consequência da mera repetição das ações do passado, como tradição ou mimetismo, passando pelo sentido da negação do passado, chegam a admitir no próprio contexto temporal (passagem do tempo) a maneira de compreender as alteridades e permanências da vida.
Rüsen diz que na narrativa genética, o “tempo ganha o sentido de temporalidade.” Quando uma das alunas afirma que não podemos julgar a mãe culpada do analfabetismo da filha, mas também não é possível aceitar que se mantenha sempre esse ciclo, ela começa a raciocinar historicamente no sentido de compreender o passado. Mas esse entendimento do passado não é guiado apenas pelo presente, muito menos serve como parâmetro para a vida neste ou no futuro, mas cada ação, em cada tempo, deve ser julgada pelos circunstâncias próprias do contexto. Sendo assim, para ela, afirmar que uma mãe está errada se não permitir que a filha estude porque tem que ajudá-la nas tarefas de casa, não significa que todas as mulheres da família, vivendo em épocas mais remotas, fossem também motivo da mesma condenação. Os valores e as circunstâncias do presente, portanto, não podem determinar a maneira como vemos o passado, embora elementos de continuidade nos permitam pensar sobre como o passado e o presente possam ser relacionados.