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Os tempos da Vida Maria


 
Para situar o leitor que estiver acessando o site a partir desse texto, esclareço que a aba CineHistória serve para reportar experiências em sala de aula com o objetivo de ajudar o aluno a se apropriar das noções e categorias de tempo a partir do uso de filmes. De uma maneira geral, cada seção de “o tempo no cinema” propõe uma articulação com as demais. É este o caso de “Vida Maria”, que conta com uma análise já publicada na aba “filmes” e que motivou um debate no projeto Planejando com cinema. O texto a seguir, portanto, reflete todo um conjunto de atividades, que envolveu análise, discussões e muita reflexão, para que enfim, fosse feito o uso da referida obra em sala de aula.

De uma maneira mais específica, ao usar o curta metragem “Vida Maria”, procurei investigar como os alunos da Educação de Jovens e Adultos compreendiam a representação do tempo na narrativa, com base nas categorias de permanência e alteridade, sempre levando em consideração os conceitos de experiência e expectativa. Procurei verificar também de que forma a percepção das alteridades e permanências em “Vida Maria”, estaria relacionada ao tipo de consciência histórica que possuíam. Mas porque exatamente este filme?

Os relatos pessoais dos meus alunos da EJA, que agenciavam o tempo conforme a experiência e expectativas deles, impulsionaram-me a pensar uma estratégia para associar suas histórias de vida, imbuídas de saberes, com a necessidade de desenvolver um raciocínio histórico que partisse da compreensão da experiência temporal. Enxergar a narrativa histórica como algo relativo ao passado apenas é a característica encontrada mais comumente entre estudantes de História, não apenas na educação de adultos. Por isso, o desafio é fazê-los reconhecer no estudo do passado, os elementos dessa narrativa, que operados conscientemente, produzem uma aprendizagem histórica significativa.

A experiência vivida pela personagem do curta, passa por muitas questões presentes na fala dos alunos da EJA no momento em que fazemos a primeira orientação pedagógica depois do seu retorno. O insight veio justamente a partir da percepção de que eu poderia confrontar essas histórias individuais com a representação fílmica e tentar entender de que maneira eles fazem interagir e atribuem sentido a passagem do tempo.

Vida Maria conta a história de uma menina, Maria José, que, como tantas outras Marias de sua família, abandona o sonho de estudar para lidar com as tarefas do cotidiano sofrido e sem perspectivas de mudanças no ambiente árido do sertão nordestino. Em pouco tempo de projeção, o filme não só consegue apresentar a vida maria, mas um conjunto de relações temporais, incluindo possibilitar a apreensão de vários outros tempos para além das ações visíveis da personagem. A partir daí, procurei instigar os alunos a se posicionarem diante da realidade exibida no filme, investigando de que formas seria possível, raciocinando historicamente, entendermos as vidas dessas marias. Ou seja, trabalhar com este filme, permitiu-me entender como os alunos relacionavam sua experiência individual com o enredo narrativo. Mas, sobretudo, pude instigá-los a perceber que, pensar historicamente é também estabelecer vínculos temporais a partir da identificação das alteridades e permanências, enxergando paralelismos entre passado e presente, sejam similaridades ou aparentes repetições.
 
 
Caso o leitor queira se inteirar mais do enredo do filme e das inúmeras possibilidades de percebermos a representação do tempo em “Vida Maria”, reitero que faça a leitura do texto que puliquei aqui no site, onde exploro em detalhes aquilo que observei e que acabou por nortear a pauta de discussões que promovi em sala de aula em parceira com os alunos da Educação de Jovens e Adultos. Adianto que aqui neste relato, vou fixar-me mais nas minhas preocupações didático-pedagógicas, e os resultados percebidos a partir das falas dos estudantes.

A experiência com o uso de “Vida Maria” mostrou-me que o cinema possui essa dimensão de ver a si mesmo. Porém, do mesmo modo que ele representa um imaginário cultural, instiga a crítica desse modo de vida, a partir da ideia de que aquilo que se apresenta, no caso do filme, é uma multiplicidade temporal. Reconhecer essa realidade, em que os tempos convivem na experiência e na expectativa de Maria José, contribuiu para que os alunos percebam que esses elementos, que visam uma aproximação entre passado, presente e futuro, caracterizam as narrativas que representam a passagem do tempo. Desenvolver esse raciocínio é essencial, posto que o mesmo deverá ser aplicado na aprendizagem histórica.

Observar as alteridades e permanências, relacionando experiência e expectativa, são atitudes e ferramentas que mobilizam o ato de pensar historicamente. Sendo assim, estimular a percepção desses elementos em uma narrativa é indispensável para desenvolver essa competência de reconhecer nela, a representação de um sentido que se produz justamente a partir da atitude de pensar a existência humana para além das ações do presente. No entanto, essas ações são orientadas pela maneira como os alunos reconhecem a presença da experiência (passado) e da expectativa (futuro) em suas vidas.

Para o trabalho que realizei com “Vida Maria”, amparei-me na classificação que o historiador e filósofo alemão Jörn Rüsen propôs para a análise da competência narrativa na aprendizagem histórica. Tentei entender como meus alunos compreendiam a vida de Maria José em relação ao seu contexto espaço-temporal, e como o enredo do filme é percebido no que se refere a “mensagem” embutida em sua narração, tomando sempre como baliza as experiências pessoais de cada um deles em interação com aquilo que a história do filme propõe.

No artigo “O desenvolvimento da competência narrativa na aprendizagem histórica: uma hipótese ontogenética relativa à consciência moral”, Rüsen relata uma história originalmente presente no livro de Samuel Johnson, Journey do the Western Islands, que por sua vez, narra a relação entre dois clãs escoceses: os Maclen e os Maclonish. O enredo se refere a uma antiga promessa que deveria ser cumprida em favor dos descendentes da família Maclonish. Propõe uma situação hipotética em que o agente da ação teria que justificar o cumprimento ou não de uma promessa ancestral, e essa explicação estaria relacionada a maneira como ele a interpretou. Ou seja, sua narrativa dependeria da sua compreensão histórica da promessa feita no passado.

O compromisso assumido pelo clã dizia que os Maclen deveriam dar abrigo em seu castelo a qualquer membro da família Maclonish, mesmo que este houvesse assassinado alguém. Segundo Rüsen, diante dessa situação, o hipotético personagem, para decidir se iria ajudar o assassino, precisaria da “consciência histórica para tratar os valores morais e o raciocínio moral.” Para o autor, existem quatro alternativas de solução para esse dilema, e cada uma está relacionada ao tipo de consciência histórica do agente, sendo a justificativa para cada uma delas também atrelada a valores constituídos historicamente.

Assim, decisões práticas que tomamos, quando somos expostos a uma situação em que o presente guarda relação com eventos passados, precisam de uma orientação temporal, quando então, fazemos uso da compreensão do passado no que se refere a maneira como este com o presente se relaciona. Ou seja, mesmo aqueles que dizem não ver sentido em estudar história, possuem um tipo de consciência moral adquirida. Para Rüsen, a aprendizagem histórica deve justamente contemplar o desenvolvimento desses tipos, ou etapas da consciência história, a saber: tradicional, exemplar, crítica e genética.

Isto posto, para mim, ao longo da prática como professor de História, ficou cada vez mais evidente que pensar em estratégias para a educação histórica (uso esse termo porque a escola é cada vez mais “apenas” um dos componentes desse processo) devemos investigar de que maneira os alunos operam essa relação entre os tempos históricos. Procurando entender de que forma mobilizam a dinâmica passado, presente e futuro. Levando-os a pensar na história não como um conhecimento estático, fixo, e sim como um saber constantemente refigurado pela interação entre esses três tempos, todos eles, como diria Agostinho, presentificados. Como para a maioria dos meus alunos da EJA, a História é uma disciplina que estuda o passado, meu trabalho a priori foi sempre pensar em estratégias que rompessem com essa visão. Por isso, resolvi utilizar o curta metragem “Vida Maria” para investigar como os alunos lidam narrativamente com a experiência temporal, em interação com a sua consciência histórica.
 
Pois bem, a partir do relato feito por Rüsen, resumido acima, pode-se imaginar que, caso alguém decidisse ajudar uma pessoa que admitiu ter cometido assassinato, sob qualquer circunstância, só poderia ter a sua atitude compreendida caso soubéssemos o que no passado germinou tal comprometimento. Com absoluta clareza, o autor diz que a função da consciência histórica é “ajudar-nos a compreender a realidade passada para compreender a realidade presente” . Mas como somos seres humanos sempre vivendo no presente, é a partir deste que vamos tentar compreender o passado, o que demanda uma cuidadosa operação intelectual que precisa ser orientada, função primordial de uma aula de História. Compreender o passado a partir de questões levantadas no presente, com vistas ao futuro, é um dos elementos pedagógicos essenciais no ensino de História, contribuindo para se pensar historicamente, pois “a história é o espelho da realidade passada na qual o presente aponta para aprender algo sobre o seu futuro.” Bem, feitas essas considerações, segue um resumo de nosso debate.

Ao final da exibição, como já havia ocorrido em outros eventos em que usei esse filme, percebi que os olhos mareados dos alunos eram um claro sinal de empatia com o enredo. A ideia de que Maria José era um pouco cada um deles, deixou de ser apenas uma suposição minha. Apesar de todo o processo de diminuição da faixa etária dos alunos da EJA, e considerando que muitos egressos da escola regular terem abandonado os estudos por motivos alheios a condições econômicas adversas, o público dessa modalidade ainda tem sua educação formal interrompida de maneira traumática. O que sem sombra de dúvida, assemelha-se em maior ou menor grau a história da personagem principal do enredo.

Após um breve instante em que todos afirmaram ter gostado bastante da obra, comecei a fazer as perguntas que iriam direcionar a investigação a que me propus. Classifiquei esses questionamentos em dois blocos: no primeiro, meu objetivo seria identificar e contextualizar os sujeitos, o espaço e o tempo da história; no segundo momento, lançaria algumas perguntas que pudessem suscitar o debate em torno da maneira como eles compreendiam a narrativa a partir do que Rüsen chamou de consciência tradicional, crítica, exemplar e genética. Evidentemente, essas questões acabam por se misturar, pois associações iam sendo feitas entre os dois blocos de perguntas, o que permitiu mais naturalidade e fluência na conversa. Acabou por ser uma maneira mais eficaz, pois percebi que eles participaram mais abertamente.

De antemão, os alunos estabeleceram que Maria José, ao mesmo tempo que uma personagem, é um retrato de várias outras. Mesmo que algumas dessas pessoas não apareçam no filme, tem seus nomes escritos em um caderno, o que fez com que eles as considerassem também como personagens, todas elas ao mesmo tempo em Maria José. Como se as Marias fossem uma personagem só. Perguntei que outras pessoas poderiam ter aparecido no filme, que fizessem parte da vida de Maria José. Eles disseram que algum vizinho, ou até uma professora perguntando se Maria iria para a escola. Mas concluímos que não seria necessário, pois toda a história pode ser compreendida sem eles. Mas que Antônio, seu futuro esposo, provavelmente um vizinho, apareceu na narrativa porque seria importante em um momento seguinte da história da personagem.

Esse foi o ponto de partida para começarmos a relacionar a narrativa do filme a construção do saber histórico. Expliquei que, em um livro de História, não consta todo o passado, mas apenas a parte dele que o autor entende ser necessário para o sentido que quer atribuir aos acontecimentos e a relação entre os fatos e pessoas que viveram no passado, em sua correlação com a contemporaneidade. Essa parte do passado será transformada em uma experiência. Sendo assim, perguntei: Foi possível compreender a vida de Maria José em apenas 9 minutos de filme? Todos disseram que sim, embora tenha sido ressaltado que muitas outras coisas ocorreram e não foram mostradas. Expliquei que não é necessário que saibamos tudo sobre um fato para que possamos compreendê-lo, mas sim, as coisas mais significativas. No entanto, definir o que é mais significativo passa pela subjetividade de quem escreve o relato histórico, aquilo que este precisa ou deseja que saibamos. Perguntei o que eles achavam que era o sentido ou significado da história que havíamos assistido.

A maioria das respostas gravitaram em torno do sofrimento da menina, que não podia estudar porque tinha que ajudar a mãe, além da falta de oportunidade para as pessoas que vivem na zona rural, afastadas dos grandes centros urbanos. Um dos alunos disse que objetivo era mostrar que a vida das Marias era sempre igual a de suas mães. Perguntei, na sequência, por que isso acontecia. Uma parte respondeu que era assim em todas as famílias, as pessoas não estudavam e as mulheres sempre obedeciam aos maridos. E que as filhas agiam assim, sempre obedientes, porque as suas mães também assim o faziam.

Após debaterem, concluíram que o tema principal era a permanência da dura realidade de gerações que não tinham oportunidades de mudar de vida. Perguntei como eles perceberam isso. Que elementos do enredo mostravam que a vida das marias pareciam sempre igual? Como essa passagem do tempo ia sendo mostrada no filme? Entre outras coisas, chamou atenção o fato de Maria José está ficando velha, tendo um monte de filhos, e no final ficando como a mãe dela. Será que eles conheciam muitas marias como a vista no filme. Responderam que hoje em dia há menos porque as pessoas tem mais oportunidades de estudar. Tem ônibus que passa perto de casa, merenda e farda para os alunos. Tem até livro de graça.

De uma maneira geral, eles acham que a situação mudou, mas muitos ainda tem que trabalhar para ajudar os pais, o que atrapalha os estudos. O fato dos alunos não terem muito tempo para estudar e irem para a escola cansados, faz com que aprendam menos, aprendendo menos, tem pouco estímulo para continuar frequentando a escola, o que acaba por provocar o abandono em alguma das etapas de sua vida escolar. Insisti: “por que existem ainda tantas marias josés?” Essa pergunta já contribuiria no sentido de observar qual o tipo de consciência histórica que eles operavam para explicar uma dada realidade social, reconhecida como um continuidade de outros tempos.

Algumas alternativas foram lançadas, tais como a culpabilidade do governo em especial. Mas também foi ressaltado que os pais muitas vezes não conseguem enxergar que os filhos podem ter um oportunidade que eles não tiveram, e os obrigam a viverem como eles. Questionei se a vida de Maria José havia sido daquela forma por causa da mãe. “O que vocês acham da atitude da mãe da menina quando brigou por ela estar escrevendo seu nome, mandando-a cuidar dos afazeres da casa?” À princípio responderam que ela estava errada, que deveria deixar a menina estudar para não viver como a mãe e as outras marias. Nesse ponto, pude perceber como o diálogo em torno de uma narrativa, conduzida por ângulos diversos, pode ajudar os alunos a raciocinarem historicamente.

Ato contínuo, questionei: “mas porque vocês acham que a Mãe de Maria José agiu daquela maneira?” A maioria disse que era porque havia sido tratada assim e por isso apenas repetia o que sempre aconteceu com ela. Para a maioria, na realidade social e espacial em que a família se encontrava, saber fazer o nome, estudar, poderia oferecer uma falsa impressão a Maria José de que a sua vida pudesse passar por uma transformação de fato, e que depois seria motivo apenas para frustração. Melhor seria, nesse caso, que ela aprendesse a cumprir a lida da roça, pois assim poderia sobreviver e contentar-se mais facilmente com o que era, com o que, de certa forma, nasceu para ser. E isso explicaria o fato das mães dizerem para as filhas que estudar seria uma perda de tempo.

“Então, por esse ângulo, pode-se dizer que as mães agiam de forma correta com as filhas?” Reforcei a pergunta. De uma maneira geral, as respostas gravitaram em torno da proteção a Maria e mesmo o fato de estar repetindo inconscientemente o que ocorreu com ela. Mas, a maioria considerou errada a atitude da mãe, embora não a condenassem. Um dos alunos afirmou que seria preciso que alguma das Marias teria que quebrar esse ciclo, permitindo que a filha fosse estudar.

Entretanto, uma das alunas ponderou, em um depoimento muito interessante, demonstrando aquilo que Rüsen chamou de consciência genética. Disse ela: “hoje, se uma mãe que tem uma filha que estuda e o ônibus passar na frente da escola e a menina ganha tudo para estudar, a mãe não pode fazer isso, mas temos que entender que em outros tempos era diferente. Não se poderia culpar os pais anteriores, que tinham outra mentalidade, pois o mundo era outro.

A partir da opinião dessa aluna, percebemos que o fato dessas mães mostradas no filme serem analfabetas, tornava ainda mais improvável que elas entendessem o papel que a escola podia desempenhar na vida das filhas, pois em um ambiente onde as coisas não mudam muito, imaginar um horizonte melhor do que o que se vive é menos provável. E com o passar do tempo, a filha ia simplesmente repetindo as ações da mãe, e convencendo-se de que seria sempre tudo do mesmo jeito. Desta forma, entre todas as perguntas feitas, “por que a mãe de Maria agia daquela forma?” foi a que permitiu com mais clareza definir como eles entendiam a realidade a partir da consciência histórica. Em síntese, os quatro tipos de repostas proferidas me ajudaram a traçar um quadro de possibilidades diante das tipologias da consciência histórica descritas por Rüsen. Foram elas: 1: porque foi sempre assim que a mulher viveu; 2: porque a mãe fez a mesma coisa com ela; 3: porque ela não entendia as possibilidades de futuro da filha, não via que ela tinha que estudar e não é desculpa a mãe não ter feito algo diferente, pois em algum momento, uma das Marias não deveria repetir a vida de sua mãe; 4: A mãe não tinha culpa, pois agia conforme a realidade do contexto do tempo e do lugar em que vivia, mas hoje a sociedade não aceita mais que as crianças faltem a escola para trabalhar, mesmo que seja para ajudar os pais.

Essas explicações vão ao encontro, nessa ordem, das formas tradicional, exemplar, crítica e genética segundo a tipologia da consciência histórica proposta por Rüsen. De uma forma mais simples de justificar historicamente os acontecimentos, afirmando os mesmos serem consequência da mera repetição das ações do passado, como tradição ou mimetismo, passando pelo sentido da negação do passado, chegam a admitir no próprio contexto temporal (passagem do tempo) a maneira de compreender as alteridades e permanências da vida.

Rüsen diz que na narrativa genética, o “tempo ganha o sentido de temporalidade.” Quando uma das alunas afirma que não podemos julgar a mãe culpada do analfabetismo da filha, mas também não é possível aceitar que se mantenha sempre esse ciclo, ela começa a raciocinar historicamente no sentido de compreender o passado. Mas esse entendimento do passado não é guiado apenas pelo presente, muito menos serve como parâmetro para a vida neste ou no futuro, mas cada ação, em cada tempo, deve ser julgada pelos circunstâncias próprias do contexto. Sendo assim, para ela, afirmar que uma mãe está errada se não permitir que a filha estude porque tem que ajudá-la nas tarefas de casa, não significa que todas as mulheres da família, vivendo em épocas mais remotas, fossem também motivo da mesma condenação. Os valores e as circunstâncias do presente, portanto, não podem determinar a maneira como vemos o passado, embora elementos de continuidade nos permitam pensar sobre como o passado e o presente possam ser relacionados.
 
 
Pensar historicamente passa por uma inevitável comparação entre o antes e o depois. Quando perguntei de que maneira podíamos perceber a passagem do tempo em “Vida Maria”, foram as mudanças que determinaram que o tempo não é estático, embora a vida de Maria José parecesse sempre a mesma, era na verdade a repetição das ações de várias Marias que alimentavam a ideia de uma continuidade. Sendo assim, o raciocínio histórico é reforçado constantemente por duas dimensões interacionadas: perceber as permanências e alteridades, e julgá-las conforme a compreensão narrativa. Ao dar cabo dessas duas operações, segundo Rüsen, tem-se um desafio adiante: produzir um sentido de orientação para a vida prática. Seria o tripé experiência, interpretação e orientação.

Ao final dessa experiência de investigação, pude perceber como o filme é um instrumento eficiente para estimular nos alunos uma reflexão sobre como se registra na narrativa as alteridades e permanência que vão nos ajudar justamente a perceber a passagem do tempo. A partir disso, podemos pensar estratégias para fomentar o raciocínio histórico, quando a partir dessa representação, possamos atribuir um sentido a essa relação entre passado, presente e futuro; e, por consequência, um sentido de orientação para nossa vida. Aproveitei a vivência dos alunos, que já sabia se aproximar da temática explorado no curta-metragem, como forma de facilitar essa investigação. Uma narrativa, portanto, que levasse em consideração seus saberes e experiências pessoais, bem como suas expectativas em relação ao futuro.

A aparência de repetição que era a vida das marias pode nos levar a pensar até que ponto a aprendizagem histórica não é também uma maneira de (ante)vermos nossa existência. A falta de um adequado letramento histórico pode nos condenar a repetir ciclos, incapazes de, pela ausência de uma atitude crítica, desvencilharmo-nos tanto do passado, que nos impõe a repetição de desigualdades, quanto por uma ideia de progresso, que em termos práticos, excluirá a maioria dos que nele acreditarem. Portanto, aprender História passa fundamentalmente por compreender quem foram as tantas Marias das quais somos filhos, mas sobretudo compreender de que forma dialogamos tanto com elas, como com as Marias do futuro. Experiência e expectativa.
 
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