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O passado está de volta (ou esteve sempre aqui?)


"Se você conhece o meu discurso, deve saber o que vem depois. Não é?”

Em um dos rituais litúrgicos mais conhecidos da religião cristã, no início da quaresma, os fiéis recebem cinzas e ouvem do celebrante que somos pó e que ao pó retornaremos. Nesse caso, as cinzas estão associadas a finitude. Portanto, à nossa condição linear e temporal. Já na mitologia grega, uma ave chamada fênix, ao morrer, provocava uma espécie de autocombustão. Queimava-se até que, a partir de suas próprias cinzas, renascia para um novo ciclo de vida, onde o fim e o começo, confundidos, tornam-na transcendência. A fênix estará sempre de volta, sem nunca de fato ter ido. Como um passado que não passa, não deixa de existir. Camuflada em meio a fúnebre fuligem, retorna mais forte.

Na cena de abertura do filme que trato aqui, um plano de estabelecimento nos conduz através de nuvens (cinzas do tempo), que, logo descortinadas, dão vida ao narrador, que nos confessa estar surpreso com um mundo novo, em que o “inimigo” havia renascido apesar de seus esforços. Pois, com tudo o que ele realizou, “esse povo deveria ter deixado de existir.” Entretanto, “eu também estou aqui, e não entendo como.” É assim que conhecemos nosso personagem principal, que abre os olhos e nos encara, depois de aparentemente ter adormecido por longo período. Envolto em seu corpo, ainda é possível perceber fogo e fumaça, como se houvesse sido queimado. Agora acordado (renascido), como a fênix, jaz no presente o chanceler alemão Adolf Hitler.

 

Como primeira alusão a temporalidade que o enredo apresenta, o personagem estranha não haver aeronave no espaço, não há barulho de bombas, e o que parece lhe ser mais estranho: um pássaro canta tranquilamente na copa de uma árvore. O que terá acontecido com o mundo? Nesse momento, fica claro que ele está deslocado no tempo, como se do ano de 1945 tivesse sido transportado ao século XXI. Até aqui tudo isso é evidente apenas para o espectador do filme. Deitado, ainda confuso, pensa que está vivendo em meio ao turbilhão de eventos que marcaram o final da Segunda Guerra. Avista crianças jogando futebol e pergunta por Martin Bormann, o chefe da chancelaria do Reich. É claro, as crianças não sabem de quem se trata, assim como desconhecem a estranha figura amarrotada diante de seus olhos.

Ao caminhar pelas ruas, começa a aventar a hipótese de ter estado desacordado durante um tempo e perdido o final da guerra, pois estanha a ausência de ruínas e o excêntrico comportamento das pessoas (turistas com seus inseparáveis aparelhos celular na Pariser Platz, diante do portão de Brandemburgo) “As pessoas parecem ter perdido completamente o juízo”, ele diz. Um marco temporal em forma de legenda na tela, informa ao espectador que estamos diegeticamente em 2014. Todavia, “Hitler” não sabe disso, embora reconheça não se tratar de “seu tempo”. Cercado por tantas pessoas “loucas”, ele avista uma mulher empurrando um carrinho de bebê, imagina se tratar de uma “confiável alemã”, aproxima-se e pergunta em que ano estão. Recebe um jato de spray de pimenta no rosto. Essas cenas hilariantes são apenas as primeiras de muitas outras situações em que, acompanhando a saga desse viajante do tempo, veremos seu dilema em tentar compreender o mundo transformado. Embora, incomodamente, aos poucos comecemos a perceber que nem tanto assim.

 
Ao chegar em uma banca de jornal, enfim descobre que já se encontra em outro ponto da história, cronologicamente falando. Ele acaba sendo acolhido pelo jornaleiro, o que é conveniente para a narrativa, já que a presença de jornais e revistas são escadas para diversas alusões à dinâmica alteridade/permanência. Hitler estranha os jornais em turco que são vendidos na banca, e diz estar surpreso que os “otomanos tenham virado o jogo”. Assim, ao ver-se rodeado de informações percebe que precisa se inteirar dos acontecimentos das últimas décadas, para que possa interagir melhor com esse novo tempo.
 

Na sequência, vemos Hitler resumir aquilo que está aprendendo. Curiosamente, tudo é de certa forma assimilado por ele em sua comparação com o tempo em que viveu, na primeira metade do século XX. Compara a qualidade dos membros dos partidos de esquerda, despreza as figuras que tentaram dar prosseguimento a seu discurso (na verdade trata-se de imagens de filmes em que atores interpretavam seu papel) e, em um dos elementos mais interessantes do roteiro, Hitler vê-se identificado com o Partido Verde alemão. Esse momento funciona como uma pequena aula de História. Porém, de um ponto de vista muito específico. Uma forma muito subjetiva de articular os fatos a seus propósitos de interpretação. A produção de uma reflexão histórica, considerando a relação entre passado e presente à luz de uma verdade pré-fabricada. Numa espécie de inversão teleológica, imagina: como pode o mundo ter chegado até aqui? Para surpresa maior do curioso leitor, “até a Polônia ainda existe. E dentro do território alemão!”.

“Ele está de volta” (tradução do original alemão Er ist wieder da) é o título desse filme lançado comercialmente em 2015 a partir de um livro homônimo publicado em 2012, escrito por Timur Vermes. Essa película levanta uma hipótese: em que tempo se encaixa um discurso? Há uma atemporalidade, uma forma de transcendência que preserva, envolto em cinzas, a permanência do passado? Afinal, o que seria estranho, se não houver um estranhamento? Assim como o enredo nos impele a ver o passado no presente, somos levados pelo personagem principal a tentar responder uma incômoda pergunta: “se você conhece o meu discurso, deve saber o que vem depois, não é? A partir daí nossa viagem, enquanto reflexão, tem como trajetória uma relação entre passado e futuro.

O “retorno” de Hitler construído a partir da mise-en-scène do filme, instiga sua audiência a pensar a necessidade de compreender o presente e sua relação com o futuro partindo de outro presente, que para nós já é passado. Se não, vejamos. Quando na aprendizagem histórica, falamos na importância da compreensão do passado, não podemos perder de vista que se trata em verdade, de nos esforçarmos para entender o presente daqueles que viviam em outros tempos. Quando Hitler “apareceu” pela primeira vez, qual foi a reação dos seus contemporâneos? Quantas foram as pessoas capazes de antever os riscos da ascensão do radicalismo político? Quantos não trataram a existência do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães como um agrupamento de pessoas excêntricas, fadada ao anonimato, ou no máximo a notas de rodapé dos registros históricos?

Como não poderia ser diferente, essa figura “excêntrica” será cooptada pelo frenesi dos meios de comunicação de massa, e o “novo” Hitler se transformará em atração midiática, “vendido” como peça de um museu ambulante de bizarrices, em um mundo que parodia a si mesmo, que testa seus limites e os limites do discurso. Afinal, esse não é Hitler de verdade. Entretanto, quem era, em 1922, o Hitler de verdade? “Se você conhece o meu discurso, deve saber o que vem depois, não é?” Essa pergunta deve continuar reverberando na mente de quem vê o filme. Porém, como o presente não é uma mera continuidade, o Hitler de 2014 já não seria novidade, embora não acreditem que fato seja ele. Seria a história agora como farsa?

 

Transformado em estrela cômica de TV, anti-herói performático, nada se parece com um monstro, por mais “estranho” que seja aquilo que diz pensar e defender. Mais uma figura folclórica que não encontrarão as notas de rodapé, a periferia da história, diferentemente de seu eu anterior. Curiosamente, quando “Hitler” estava ainda na banca de jornais, folheando uma publicação, vê em uma manchete de capa a seguinte frase: a história já está escrita. Poderíamos nos perguntar qual o sentido da palavra história aqui. Trata-se da história acontecimento (res gestae) ou da história enquanto narrativa sobre o passado (rerum gestarum)? A presença do passado através daquela aparentemente inofensiva figura, parece não provocar reações nas pessoas. Na maioria delas, ao menos. A história, além de escrita, estaria superada?

Quanto ao estranhamento causado pelo vendaval de canais de “distribuição” de informações do mundo novo, o próprio “Hitler” se encarrega de fazer um comentário. À respeito da TV, que a priori confunde com um suporte para pendurar roupas, chama a atenção para a ausência da pauta política. Mas logo percebe seu potencial. “É um avanço da tecnologia. Uma oportunidade incrível de divulgação. Mas porque tem um cozinheiro aí? [...] essas pessoas só falam imbecilidades. Ainda bem que Goebbels não está aqui para ver isso”. Sem dúvida, deveria ser bem chocante para alguém do passado, ver o que interessa as pessoas acompanharem na programação televisiva atualmente. Mas até aí pode estar uma arma decisiva.

Como elemento importante na condução da narrativa, temos um outro personagem, Sawatzki, um videomaker freelancer que percebe na figura exótica do “Hitler renascido” (que, como os outros, ele acredita ser um ator) uma chance de produzir um conteúdo de apelo popular. Assim, iniciam juntos uma pequena jornada, na tentativa de filmar uma reportagem em que abordam pessoas para tratar da situação socioeconômica da Alemanha. Nesse ponto “Ele está de volta” transforma-se em exercício de metalinguagem, pois além de mostrar um filme sendo feito dentro de outro, promove um retorno das questões associadas ao passado que conhecemos através dos livros de História.

São diversas as situações impactantes. Numa delas, uma entrevistada admite incomodar-se com os imigrantes, mas diz ter medo de expressar algo para não ser chamada de racista, o que remete ao peso do passado sobre o funcionamento da sociedade. Ao longo das conversas, em que “Hitler” experimenta seu carisma e põe em prática seu arsenal de enredos persuasivos, acaba concluindo que, enquanto ficou ausente, “a democracia deixou poucas marcas no povo”.

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Aliás, essa ideia é explorada brilhantemente no roteiro, pois em sua peregrinação pela Alemanha, Sawatzki e Hitler encontram pessoas com ideias bem semelhantes as vistas no período anterior a Segunda Guerra, e o “Führer” faz sempre questão de afirmar que os anseios manifestados serão anotados na sua agenda. Um dos entrevistados chega a dizer que poderá ajudá-lo a montar campos de concentração, o que remete a ação dos contemporâneos do nazismo que agiram como perpetradores (para usar o consagrado conceito de Daniel Goldhagen) dos ideais do partido. Hitler conclui que “o povo estava calado, mas com raiva. Frustrado com as condições de vida, igual a 1930. Só que na época não existia palavra pra isso: analfabetismo político.” Mas ele sabe exatamente que seria preciso “apenas jogar algumas palavras-chave para as pessoas, que elas logo caíram na minha rede.
 
Mas é o que vai acontecer também com o personagem. Ele vai ser engolido e disseminado pelas redes sociais. As fotos e vídeos vão “viralizar” sua presença, transformando-o em um figura midiática. Sinal dos tempos, do nosso tempo. Em meio a permanências e alteridades, essa característica singular do século XXI se apresenta na narrativa. Tudo é muito rápido, mas também superficial, e potencialmente esquecível. Por isso, “Hitler” logo cuidará de fazer uso dessa rede para replicar suas ideias, já há muito conhecidas, ou talvez, desconhecidas.
 

Em sala de aula

Professor, “Ele está de volta” é uma obra de ficção. Porém, é um exemplo do que chamo de filme-texto, dado ao potencial de suporte didático-pedagógico que possui. É pouco provável que um filme comercial seja pensado, ainda em sua gênese, como uma ferramenta de ensino no espaço escolar, mas é igualmente ingênuo não acreditar que quem o produz deixe de considerar seu papel enquanto formulador de questões que serão incorporadas a uma cultura histórica no tempo que o acolhe. Como documento a ser problematizado em um debate, seja em sala de aula, ou em qualquer outro espaço, “Ele está de volta” pode ser visto como um exemplo de filme que permite transpor a mera exposição de um conteúdo, já que instiga não só a imaginação histórica, como, e principalmente, intima-nos a pensar sobre a diferença entre verdade e ficção. Aliás, salientei numa passagem da resenha acima, a cena em que “Hitler” confunde personagens de filmes com pessoas que tentavam passar-se por ele. Esse é um sintoma comum entre aqueles que confundem fato e opinião.

Quero pontuar, entretanto, que mesmo buscando realçar as características de continuidade e descontinuidade na história, “Ele está de volta dialoga bastante com o tempo presente no sentido de que é fruto de uma preocupação com o crescimento do discurso de extrema direita na Europa, o que por si, já dá margem a problematizações em torno das possíveis alteridades e permanências apresentadas na história das últimas décadas. Penso que seja mesmo esse o aspecto a ser mais trabalhado em sala de aula, se levarmos em conta as inúmeras oportunidades que o enredo do filme nos fornece para provocar esse tipo de reflexão.

Desse ponto de vista, é importante ressaltar que o docente procure fazer um mapeamento dessas cenas e sequências. Procure decupar e propor uma organização didática que possa alimentar e estimular a conversa em torno da presença de elementos do passado na contemporaneidade. Entretanto, procure demostrar que cada tempo é feito de singularidades, e que a percepção delas nos permite também estabelecer uma empatia com os outros tempos presentes que estudamos na história, e que comumente chamamos de passado.

Afinal, a obra quer nos mostrar o quanto temos de presente no passado, ou o contrário? Quando “Hitler” ganha um programa de TV, onde há permanência e mudança? O enredo é cheio de signos, confeccionados para nos conduzir a esse tipo de raciocínio. O personagem de Sawatzki lembra a cineasta Leni Riefenstahl, o uso das redes sociais e as estratégias usadas pelos trolls, remetem aos jornais que produziam “notícias” que prendiam a atenção dos alemães, que acabavam “fisgados” pelo discurso nacional socialista. Aliás, essas são comparações que nós professores podemos fazer. É preciso considerar que a maioria dos alunos não conseguem atingir esse grau de compreensão, e o filme é justamente uma oportunidade para que se produza esse alargamento temporal, ampliando sua experiência.

Esse suporte pode dialogar com outros. O professor poderá exibir trechos dos filmes de Riefenstahl, apresentar os jornais editados pela máquina de propaganda de Goebbels, inclusive também tratar dos filmes antissemitas da década de 1930 e comparar com as piadas sobre os judeus proferidas em “Ele está de volta”. Entretanto, não se pode deixar de considerar algo muito importante, a maneira como o público recepcionou esse filme. Por mais que aparente ser uma crítica a mídia e ao “ressurgimento” do pensamento radical de direita, xenófobo e nacionalista, algumas pessoas podem achar que o personagem “Hitler” foi tratado de forma simpática, o que suscita um debate sobre como uma obra pode ser percebida de várias maneiras.

Evidentemente, para se abordar essas questões em sala de aula, vários aspectos precisam ser levados em conta, como a faixa-etária dos alunos. Pois alguns elementos desse debate podem ser complexos para alunos da segunda etapa do Ensino Fundamental, e mais adequadas para o Ensino Médio. Por exemplo: na frase que usei como epígrafe, pode-se propor um interessante diálogo sobre o sentido da aprendizagem histórica, e por que não, a própria produção historiográfica, na medida em que temos aí uma forma de pensar que chamamos de historicismo, e que nos remete a formas de consciência histórica atreladas ao antigo regime de historicidade. Porém, outros aspectos são bem mais simples, como estimular os alunos a tentar entender a importância das transformações espaciais para a determinação da passagem do tempo, o que fez com que “Hitler” percebesse que não estava mais em 1945 ainda no começo do filme.

São tantas as questões, que é quase impossível encerrar essa singela sugestão de elementos que podem ser trabalhados em sala de aula. Há duas outras passagens que considero particularmente importantes. Em uma delas, “Hitler” está maravilhando-se com a paisagem da natureza alemã, o que remete ao movimento Völkisch, que celebrava a ligação espiritual do homem com sua terra. No entanto, ele atira uma embalagem usada no chão, para espanto e incômodo de seu companheiro Sawatzki. O que essa situação nos diz sobre o presente? Observei que algumas pessoas mais idosas, olham para aquela figura parecida com Adolf Hitler, e não parecem querer entrar na brincadeira. Será porque elas sabiam o que viria depois?

Espero que os leitores, sejam professores de História ou não, possam ter percebido a maneira como esse tipo de filme nos sugere uma reflexão histórica importante. Jamais poderia esgotar aqui as oportunidades de explorar esse enredo, rico em cada detalhe de sua construção, e ao mesmo tempo, provocador. Espero contar com as sugestões e comentários de vocês. Bons filmes e boas reflexões. Até a próxima!

Dados do filme:
• Título: Ele está de volta
• Título original: Er Ist Wieder Da
• Direção: David Wnendt
• Roteiro: David Wnendt e Mizzi Meyer (Baseado em livro homônimo escrito por Timur Vermes).
• Ano de lançamento nos cinemas: 2015.
• País de produção: Alemanha.
• Duração: 116 minutos.
• Elenco principal: Oliver Masucci, Fabian Busch, Franziska Wulf, Christoph Maria Herbst, Katja Riemann entre outros.

Sinopse:

Renascido literalmente das cinzas depois de sessenta e nove anos, Adolf Hitler perambula pelas ruas da Berlim do ano 2014. Confundido à princípio com um ator performático, será transformado em um personagem do espetáculo midiático de massa. Porém, fará uso dessa mesma engrenagem para replicar suas ideias, já há muito conhecidas, ou desconhecidas. O que há de permanência e alteridade nestes dois mundos que se encontram? Está o passado mais presente do que gostaríamos? Essas e outras questões são suscitadas nesta “comédia” dirigida por David Wnendt, baseada no livro homônimo de Timur Vermes, lançado em 2012.

Referência para citação:

Ele está de volta. Direção: David Wnendt. Produção: Mythos Film, Constantin Film e Claussen Wöbke Putz Filmproduktion. Elenco: Oliver Masucci, Fabian Busch, Franziska Wulf, Christoph Maria Herbst, Katja Riemann entre outros. Roteiro: David Wnendt e Mizzi Meyer (Baseado em livro homônimo escrito por Timur Vermes). Título Original: Er Ist Wieder Da. País: Alemanha. Ano de lançamento: 2015. Cor. Duração: 116 min.


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