De volta para o futuro
janeiro 18, 2020
Ele está de volta
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Tempos Infiltrados


Em 2018, o diretor americano Spike Lee, um já costumeiro realizador de obras que discutem a questão racial nos Estados Unidos, lançou o filme “Infiltrado na Klan”, que promove uma instigante reflexão sobre esse problema à luz da relação presente-passado. Motivado, sem sombra de dúvidas, pelo recente acirramento do discurso de ódio na internet, e mais precisamente pelo crescimento da popularidade dos grupos ligados a organizações que defendem a chamada supremacia branca, a película faz um paralelo entre três tempos distintos dessa questão. Além de uma alusão (visualmente muito direta no final do filme) à atualidade, a obra retrata as práticas na Ku Klux Klan na década de 1970; e dialoga com um filme lançado há mais de um século, “O nascimento de uma nação”, dirigido por David Griffith. Dessa forma, estabelecendo um arco de temporalidade com a própria história do cinema.

Se observarmos a cronologia da produção do filme de Spike Lee, vemos que a sua estreia aconteceu justamente um ano depois dos trágicos eventos ocorridos na cidade de Charlottesville, no estado da Virgínia, onde houve o enfrentamento entre manifestantes ligados a extrema-direita nos EUA (que protestavam contra a remoção da estátua do confederado Robert Lee) e um grupo de oposição (identificados como antifascistas). O episódio acabou com uma morte e muitos feridos, e desencadeou uma nova onda de discussões em torno da problemática racial em território estadunidense.

 

Segundo dados oficiais de divulgação da película, o diretor aceitou assumir o posto um mês depois deles. Ou seja, mesmo que já existisse o interesse em se filmar a história (os direitos do livro em que a obra se baseia já tinham sido adquiridos desde 2015), a atualização do problema tratado nela como pano de fundo certamente impulsionou sua realização. O que não só demonstra como o cinema dialoga com sua própria história, mas propõe a partir de questões do presente, uma interação com o passado. E isso é visto de várias formas no filme. Por exemplo, um dos personagens de “Infiltrado na Klan” se chama David Duke, remetendo ao conhecido defensor de ideias nazistas, e ex-líder da KKK, que estava presente em Charlottesville.

Esse é um exemplar de um tipo de abordagem não muito incomum nas narrativas cinematográficas, em que um enredo, apesar de aparentemente está representando eventos do passado, faz uma alusão direta a acontecimentos contemporâneos ao espectador, como se um tempo estivesse infiltrado no outro, o que reforça o caráter de permanência na história, ao menos em sua construção discursiva. Não só é possível admitir que “Infiltrado na Klan” é um filme sobre o presente das relações sociais nos Estados Unidos da era Trump, como é, da mesma forma, uma afirmação de seu caráter de continuidade.

Isso fica bem evidenciado se levarmos em consideração que o “retorno” de um discurso de ódio racial explícito está mais uma vez relacionado a ascensão dos grupos afrodescendentes americanos. A reaparição de organizações como a KKK, embora sob denominações específicas em cada contexto, apresenta-se numa ordem cíclica. Entretanto, ao criar um enredo que historiciza essa dinâmica, o filme coloca a importante questão do passado como experiência, na medida em que esse passado se torna mais um elemento que pesa sobre os acontecimentos, e serve como “inspiração”, tanto para os perpetradores (Ku Klux Klan, por exemplo) como para a resistência.
 

A linha condutora do enredo tem como elemento central a história de Ron Stallworth, um policial negro do Estado do Colorado, que mantém contato com a organização Cavaleiros da Ku Klux Klan, uma das ramificações dessa antiga denominação que reorganizou-se para fazer frente ao avanço dos direitos civis da população afrodescendente dos Estados Unidos naquele tempo. Ron acaba virando sócio da KKK. Todavia, outro policial, Flip Zimmerman, precisa comparecer as reuniões em seu lugar. Dessa forma, eles acabam por descobrir um plano de atentado que estava sendo arquitetado contra a militância negra.

Porém, interessa-nos especialmente a estratégia usada na construção narrativa para explorar a aproximação entre os eventos representados (passado), e o recrudescimento do discurso racial, cuja culminância é a própria sequência final. Nesse caso, o episódio de Charlottesville é exposto com extrema visceralidade, como se qualquer ideia de “evolução” fosse imediatamente varrida da mente do espectador. Como se fôssemos todos arremessados na torrente do continuum, do tempo que se fossiliza na permanência.

Além dos paralelos que vão sendo construídos entre a década de 1970 e o presente (que ficam em grande medida à cargo do espectador), “Infiltrado na Klan” investiga a antecedência daqueles conflitos raciais. Há situações encaixadas para funcionarem como discursos sobre essa trajetória, destacando a crueldade de um sistema, de forma alguma velado, de discriminação e violência (cujo arco temporal-narrativo se fechará no clímax). Entretanto, como exercício de reflexão histórica, reconhecer o tempo a partir das falas dos personagens é o ponto de instigância mais peculiar da obra, já que elas possuem a eficiente função de confundir o espectador, dadas as condições de similaridade entre aquele tempo e este em que vivemos.

 
Portanto, o filme não produz apenas um paralelo entre o passado e o presente, mas conduz a audiência atenta a pensar os artifícios narrativos que usamos para construir essa relação. E aqui nós temos três exemplos disso. Os personagens (agentes da KKK e militantes dos direitos civis dos negros) elaboram sua história, seu ponto de vista sobre as rupturas e continuidades. Sobre como e porque chegamos aqui. Mas, acima dessas duas narrativas, o filme propõe que pensemos o futuro. Enquanto os personagens veem o passado e o presente de seu ponto de vista e lugar no tempo, estamos em 2020. O que mudou e o que permaneceu? Até que ponto o passado permanece infiltrado no agora?

Em sala de aula:

Caros colegas professores, como já escrevi na resenha, o filme “Infiltrado na Klan” trata não apenas do passado, pois traz à tona questões do nosso tempo. Se partirmos da ideia de que, grosso modo, “toda história é contemporânea”, é pertinente que reconheçamos: essas questões são lançadas também ao presente. Sendo assim, diante das situações abordadas no enredo, somos impulsionados a pensar as continuidades e descontinuidades, posto que os acontecimentos guardam entre si, relações de pertencimento. Longe de propor um simples exercício de futurologia, é possível pensarmos em que grau essa situação pode evoluir linearmente, na medida em que os próprios discursos recorrem aos exemplos do passado, tanto de um lado como do outro.

 

Quero aproveitar esse filme para chamar a atenção de algo que tenho abordado pouco nas resenhas, em especial nesse tópico dedicado às reflexões que as narrativas cinematográficas podem suscitar em sala de aula. Refiro-me ao estudo (mesmo que de maneira introdutória) da produção da obra. Considero muito apropriado que o docente, seja antes ou depois da exibição, fale um pouco sobre o que envolveu a sua realização. Nesse caso, uma pesquisa sobre o portfólio do diretor e o contexto em que o enredo foi escrito, pode lançar luz sobre sua recepção, especialmente no sentido de encaminhar um elo entre passado e presente, no sentido da contemporaneidade da intenção do discurso.

Através desse filme, é possível trabalhar uma série de elementos que ajudam a entender a história da sociedade americana no terceiro quartel do século XX. Além da já mencionada ordem dos Cavaleiros da Ku Klux Klan, o diretor Spike Lee chama a atenção para a presença da organização social dos afro-americanos, com intuito de promover uma resistência organizada, além de uma luta permanente por seus direitos, como é o caso dos Panteras Negras. Entretanto, de passagem, ele acaba por aludir a outras manifestações que foram fundamentais na década de 1970, como a Blaxplotation. Esses fenômenos culturais e políticos, apesar de sua repercussão posterior, são marcas daquele momento, estão a ele associados historicamente.

No que se refere às marcações temporais apresentadas, e que identificam o tempo do enredo, há uma cena em particular que pode ser usada como uma atividade de percepção e identificação do contexto em que se passa a história. Trata-se de uma palestra organizada pela União dos Estudantes Negros da Universidade do Colorado. A duração em tela do evento é de sete minutos apenas. Porém, diversos elementos que povoam a fala, exacerba o que foram aqueles anos, a começar pela própria presença dos negros no ambiente universitário estadunidense.

O palestrante que nos é apresentado no filme é Kwame Ture (ou Stockely Carmichael, seu nome original), um dos mais importantes militantes pelos direitos civis dos negros norte-americanos. De forma veemente, numa clara narrativa histórica, ele fala sobre a guerra do Vietnã, o movimento dos Panteras Negras, a representação do negro no audiovisual (com destaque para o cinema), o tratamento dispensado a população afrodescendente pelos policiais, e sempre com a palavra de ordem “todo poder ao povo”, numa alusão a conhecida fala de Lenin, já que historicamente havia uma relação desse movimento com a esquerda comunista.
 
Aproveitando essa cena em particular, pode ser perguntado aos alunos quais os elementos do discurso que identificam a época. Os fatos, a visão de mundo, que são típicos daquela sociedade naquele contexto específico. Pois esse é um dos aspectos importantes da representação do tempo no cinema. Como muitos anos precisam ser condensados em duas horas em média, é preciso encaixar diversos elementos imprescindíveis em uma cena ou sequência, para que se produza ao final, aquilo que chamamos de sentido histórico. Muito mais que uma reconstituição dos fatos, ipse literis, o que temos geralmente é uma construção narrativa que sintetiza o contexto. Em “Infiltrado na Klan” isso acontece também na cena em que um personagem narra o linchamento público de um afro-americano, constituindo-se, neste e em outros momentos, como uma narrativa dentro de outra, pois nos dois casos citados, temos a sensação dessas falas estarem mais direcionadas ao espectador do filme do que aos outros personagens.
 
Essas alusões a personagens e eventos, podem, na verdade, devem, ser usados para uma pesquisa adicional produzida pelos alunos e socializada em sala de aula. A questão da participação dos negros na Guerra do Vietnã, a representação estereotipada da população afro-americana, a reação através do Blaxplotation, o movimento Panteras Negras, a vida de algumas lideranças, como Ture, ajudarão todos a entender melhor aquele tempo. Mas é importante pontuar que não podemos perder de vista as similaridades entre o passado e o presente. Dessa forma, seria muito interessante uma pesquisa sobre a ação dos supremacistas brancos à luz da “antiga” Ku Klux Klan. Assim como as várias situações no enredo que podem ser percebidas como alusões ao presente, à exemplo da ideia da América voltar a ser grande.
 
Mas não podemos esquecer que há uma singularidade em qualquer tempo. Hoje, o cinema é usado para produzir uma reflexão que tece uma forte crítica à parte branca e conservadora dos Estados Unidos. E, ao contrário de outros momentos, tem uma considerável repercussão cultural, não presa ao guetos ou nichos. “Infiltrado na Klan” venceu o Oscar de melhor roteiro adaptado e estava concorrendo a melhor filme com outra obra que explora uma temática racial (Green book, que acabou sendo premiado). Sendo assim, até mesmo para se produzir um paralelo com o que é feito no próprio filme, seria interessante exibir algumas cenas de “O nascimento de uma nação” (1915), e mostrar aos alunos como ao longo da história do cinema, diferentes narrativas são construídas para “explicar” a sociedade. Os filmes são, enfim, documentos de seu tempo, e são para nós professores, fontes a serem frequentemente redescobertas.
Dados do filme:
• Título: Infiltrado na Klan
• Título original: BlacKkKlansman
• Direção: Spike Lee
• Roteiro: Charlie Wachtel, David Rabinowitz, Kevin Willmott e Spike Lee (Baseado em livro homônimo escrito por Ron Stallworth).
• Ano de lançamento nos cinemas: 2018.
• País de produção: Estados Unidos.
• Duração: 135 minutos.
• Elenco principal: Adam Driver, John David Washington, Laura Harrier, Alec Baldwin, Topher Grace, Paul Walter Hauser, entre outros.

Sinopse: Aceito na corporação policial do Estado do Colorado no final da década de 1970, Ron Stallworth, que é negro, organiza um inusitado plano: infiltrar-se na organização racista Ku Klux Klan como membro. Não podendo aparecer nas reuniões por motivos óbvios, um outro policial (Flip Zimmerman) vai em seu lugar. Em meio as investigações sobre uma possível ameaça de atentado, o filme apresenta o contexto histórico das lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos ao mesmo tempo que instiga o espectador a perceber as relações entre o passado e o presente na sociedade daquele país.
Referência para citação: Infiltrado na Klan. Direção: Spike Lee. Produtores: Jason Blum, Jordam Peele, Raymond Mansfiel e Spike Lee. Elenco: Adam Driver, John David Washington, Laura Harrier, Alec Baldwin, Topher Grace, Paul Walter Hauser, entre outros. Roteiro: Charlie Wachtel, David Rabinowitz, Kevin Willmott e Spike Lee (Baseado em livro homônimo escrito por Ron Stallworth). Título Original: BlacKkKlansman. País: Estados Unidos. Ano de lançamento: 2018. Cor. Duração: 135 minutos.

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