Se observarmos a cronologia da produção do filme de Spike Lee, vemos que a sua estreia aconteceu justamente um ano depois dos trágicos eventos ocorridos na cidade de Charlottesville, no estado da Virgínia, onde houve o enfrentamento entre manifestantes ligados a extrema-direita nos EUA (que protestavam contra a remoção da estátua do confederado Robert Lee) e um grupo de oposição (identificados como antifascistas). O episódio acabou com uma morte e muitos feridos, e desencadeou uma nova onda de discussões em torno da problemática racial em território estadunidense.
Segundo dados oficiais de divulgação da película, o diretor aceitou assumir o posto um mês depois deles. Ou seja, mesmo que já existisse o interesse em se filmar a história (os direitos do livro em que a obra se baseia já tinham sido adquiridos desde 2015), a atualização do problema tratado nela como pano de fundo certamente impulsionou sua realização. O que não só demonstra como o cinema dialoga com sua própria história, mas propõe a partir de questões do presente, uma interação com o passado. E isso é visto de várias formas no filme. Por exemplo, um dos personagens de “Infiltrado na Klan” se chama David Duke, remetendo ao conhecido defensor de ideias nazistas, e ex-líder da KKK, que estava presente em Charlottesville.
Esse é um exemplar de um tipo de abordagem não muito incomum nas narrativas cinematográficas, em que um enredo, apesar de aparentemente está representando eventos do passado, faz uma alusão direta a acontecimentos contemporâneos ao espectador, como se um tempo estivesse infiltrado no outro, o que reforça o caráter de permanência na história, ao menos em sua construção discursiva. Não só é possível admitir que “Infiltrado na Klan” é um filme sobre o presente das relações sociais nos Estados Unidos da era Trump, como é, da mesma forma, uma afirmação de seu caráter de continuidade.
A linha condutora do enredo tem como elemento central a história de Ron Stallworth, um policial negro do Estado do Colorado, que mantém contato com a organização Cavaleiros da Ku Klux Klan, uma das ramificações dessa antiga denominação que reorganizou-se para fazer frente ao avanço dos direitos civis da população afrodescendente dos Estados Unidos naquele tempo. Ron acaba virando sócio da KKK. Todavia, outro policial, Flip Zimmerman, precisa comparecer as reuniões em seu lugar. Dessa forma, eles acabam por descobrir um plano de atentado que estava sendo arquitetado contra a militância negra.
Porém, interessa-nos especialmente a estratégia usada na construção narrativa para explorar a aproximação entre os eventos representados (passado), e o recrudescimento do discurso racial, cuja culminância é a própria sequência final. Nesse caso, o episódio de Charlottesville é exposto com extrema visceralidade, como se qualquer ideia de “evolução” fosse imediatamente varrida da mente do espectador. Como se fôssemos todos arremessados na torrente do continuum, do tempo que se fossiliza na permanência.
Além dos paralelos que vão sendo construídos entre a década de 1970 e o presente (que ficam em grande medida à cargo do espectador), “Infiltrado na Klan” investiga a antecedência daqueles conflitos raciais. Há situações encaixadas para funcionarem como discursos sobre essa trajetória, destacando a crueldade de um sistema, de forma alguma velado, de discriminação e violência (cujo arco temporal-narrativo se fechará no clímax). Entretanto, como exercício de reflexão histórica, reconhecer o tempo a partir das falas dos personagens é o ponto de instigância mais peculiar da obra, já que elas possuem a eficiente função de confundir o espectador, dadas as condições de similaridade entre aquele tempo e este em que vivemos.
Caros colegas professores, como já escrevi na resenha, o filme “Infiltrado na Klan” trata não apenas do passado, pois traz à tona questões do nosso tempo. Se partirmos da ideia de que, grosso modo, “toda história é contemporânea”, é pertinente que reconheçamos: essas questões são lançadas também ao presente. Sendo assim, diante das situações abordadas no enredo, somos impulsionados a pensar as continuidades e descontinuidades, posto que os acontecimentos guardam entre si, relações de pertencimento. Longe de propor um simples exercício de futurologia, é possível pensarmos em que grau essa situação pode evoluir linearmente, na medida em que os próprios discursos recorrem aos exemplos do passado, tanto de um lado como do outro.
Quero aproveitar esse filme para chamar a atenção de algo que tenho abordado pouco nas resenhas, em especial nesse tópico dedicado às reflexões que as narrativas cinematográficas podem suscitar em sala de aula. Refiro-me ao estudo (mesmo que de maneira introdutória) da produção da obra. Considero muito apropriado que o docente, seja antes ou depois da exibição, fale um pouco sobre o que envolveu a sua realização. Nesse caso, uma pesquisa sobre o portfólio do diretor e o contexto em que o enredo foi escrito, pode lançar luz sobre sua recepção, especialmente no sentido de encaminhar um elo entre passado e presente, no sentido da contemporaneidade da intenção do discurso.
Através desse filme, é possível trabalhar uma série de elementos que ajudam a entender a história da sociedade americana no terceiro quartel do século XX. Além da já mencionada ordem dos Cavaleiros da Ku Klux Klan, o diretor Spike Lee chama a atenção para a presença da organização social dos afro-americanos, com intuito de promover uma resistência organizada, além de uma luta permanente por seus direitos, como é o caso dos Panteras Negras. Entretanto, de passagem, ele acaba por aludir a outras manifestações que foram fundamentais na década de 1970, como a Blaxplotation. Esses fenômenos culturais e políticos, apesar de sua repercussão posterior, são marcas daquele momento, estão a ele associados historicamente.
No que se refere às marcações temporais apresentadas, e que identificam o tempo do enredo, há uma cena em particular que pode ser usada como uma atividade de percepção e identificação do contexto em que se passa a história. Trata-se de uma palestra organizada pela União dos Estudantes Negros da Universidade do Colorado. A duração em tela do evento é de sete minutos apenas. Porém, diversos elementos que povoam a fala, exacerba o que foram aqueles anos, a começar pela própria presença dos negros no ambiente universitário estadunidense.