Em 1985, precisamente no feriado natalino, estreava um dos filmes mais icônicos já realizados. Raro caso de sucesso de público e crítica, “De volta para o futuro”. Com uma argumentação tão bem construída que até hoje é estudada nos cursos de cinema, seu maior mérito talvez tenha sido a capacidade de envolver o espectador em um tipo de enredo que há muito fascina a humanidade: as viagens no tempo. Evitando tratar de grandes fatos históricos, e a possibilidade de alterá-los, o roteiro concentra-se em uma experiência estritamente pessoal, o que reforça o senso de empatia do público, que vê-se envolvido na aventura, imaginando-se nas mesmas situações mostradas na tela, especialmente no que se refere a relação de causalidade entre passado, presente e futuro.
Para que Marty Mcfly possa consertar o tempo, ele precisa viver 1985. Falar, vestir-se e pensar como as pessoas (seus pais) do passado. Ele precisa interagir com aquele tempo. Mas nunca esquecendo que seus atos produzem consequências que alteram aquilo que antes ele conhecia como sendo a ordem natural do tempo. Ou seja, o futuro é uma consequência direta (embora não completamente) do passado. Mas o aspecto mais interessante do roteiro, e que muitas vezes passa despercebido pelos espectadores, é que o sentido de passado, presente e futuro no filme é alterado. Pois aquilo que para Marty seria o presente (o ano de 1985) já é na verdade o seu passado. E é desse passado exatamente, que ele vai extrair as informações para que possa não só consertar o tempo, mas evitar a sua própria extinção.
Ainda no começo da história, somos apresentados a família Mcfly, e entre uma e outra conversa trivial, o roteiro nos põe a par da história do primeiro encontro dos pais de Marty, e consequentemente o baile onde se beijam. Como o primeiro desses fatos não mais aconteceu, justamente por interferência de Marty, agora ele precisa fazer com que os eventos do baile ocorram. Entretanto, como voltar para 1985? É aqui que temos um enrosco semântico. Se não, vejamos. O que Marty deseja é voltar para o seu tempo original, mas isso não é mais possível, pois essa linha temporal já foi definitivamente alterada. Por esse ângulo, 1985 é passado em relação a 1955. O que ele pode fazer é viajar para o futuro. Nesse caso, o título “De volta para o futuro”, que na época do lançamento do filme causou estranhamento, faz todo sentido, pois, ao mesmo tempo, 1985 é passado e futuro, dependendo do ponto de vista dos personagens.
Antes da viagem, Marty havia feito uma doação para o conserto do relógio da torre da cidade. Nesse momento, ele recebe o folheto, contanto a história de um raio que atingiu o relógio de uma torre exatamente no ano de 1985, com a informação precisa do instante em que isso acontece. É muito interessante, pois se pensarmos bem, esse folheto tanto é um relato histórico, que narra um acontecimento passado, como na narrativa do filme, funciona como uma previsão do futuro. Todavia, é mais um conhecimento do passado que lhe auxilia no decorrer dos eventos presentes. O próprio Dr. Emmett Brown de 1955 só acredita que ele veio do futuro porque Marty sabe explicar a origem do ferimento que o cientista tem na testa. História que ficou sabendo pouco tempo antes da viagem.
Porém, cabe aqui ressaltar que antes de ser convencido por Marty, o Dr. Emmett Brown lhe pergunta: “Me diga, garoto do futuro: quem é o presidente dos Estados Unidos em 1985?” Quando Marty responde que é Ronald Reagan, Dr. Brown ironiza e pergunta se o vice-presidente seria Jerry Lewis. É importante lembrar que em 1955 Ronald Reagan era um ator, inclusive havia um filme estrelado por ele em exibição na cidade de Hill Valley naquele momento (The cattle queen of Montana. No Brasil: Montana: terra do ódio). Em mais um exemplo de foreshadowing, o cartaz do filme é destacado e lido por Marty logo que ele chega na cidade. Como poderia acreditar o Dr. Brown que aquele ator de filmes de comédia, romances e westerns seria trinta anos depois o presidente americano?
Estabelecidas essas situações do enredo, fica evidenciada a forma como o filme instiga no espectador a necessidade de um raciocínio lógico-temporal. As informações obtidas por Marty em 1985 serão cruciais para resolver os problemas de 1955. Porém, nunca deixando de considerar que todas as atitudes e interações com os eventos da década de 50, irão repercutir no futuro, de maneira mais ou menos grave, positiva ou negativamente. Essa relação de causa de efeito percorre toda a experiência de ver o filme. Ou seja, a compreensão de como passado, presente e futuro se conectam pela noção de causalidade, que é inerente a percepção humana do funcionamento do mundo.
Além disso, “De volta para o futuro” também é um estímulo à imaginação histórica, pois trabalha com elementos de contrafactualidade. Quando falei no início do texto que um dos méritos do roteiro é a criação de uma empatia com o personagem é porque, mergulhados em sua experiência pessoal, somos levados a nos imaginar alterando fatos importantes de nossa vida, e inferindo as repercussões que isso teria no desenrolar dos fatos. Ao fazermos isso, produzimos uma reflexão de caráter histórico, na medida em que extraímos dessa imaginação, um sentido a partir da relação entre passado, presente e futuro em nossas vidas.
Colegas docentes, este filme foi um marco para mim. Talvez tenha sido a primeira vez que me vi, quando tinha 14 anos, refletindo sobre as relações entre passado, presente e futuro em nossas vidas. De uma certa forma, até mesmo pensando sobre como se dá a nossa relação com o tempo. Em uma aula de História, uma ciência e/ou narrativa que lida essencialmente com a representação dele, é sempre importante instigar e desenvolver a competência de pensar sua representação. Entendo que esse filme seja uma bela ferramenta para debater o tema com os alunos. Quero propor a seguir, alguns pontos a serem destacados numa possível sequência didática. Sempre lembrando que a função de um filme no ensino de História é ir muito além de uma ilustração de conteúdos, ser um meio para dar sentido ao seu estudo, bem como facilitar sua assimilação. Vamos lá, então.
Observem que logo no começo do filme há várias referências ao tempo. Essas informações são apresentadas em uma ordem, pois primeiro vemos um recorte de jornal referir-se ao passado (um tempo para onde posteriormente seremos conduzidos) A seguir, percebemos estar no ano de 1985 (devido a um anúncio publicitário). O rádio nos diz que se trata do mês de outubro, quando acontece balanço no comércio, então é mês de promoção (tempo cíclico). A TV ligada da garagem do Dr. Brown nos chama a atenção para as notícias diárias (as efemérides). Sincronizada a todas essas informações, começa a funcionar uma engrenagem produzida pelo Dr. Brown para alimentar seu cachorro Einstein. Temos aqui, um prato cheio. Aliás, dois, o de Einstein e o nosso.
Por que a observação desses elementos é importante? Porque as narrativas históricas estão cada vez mais carregadas desses recursos. O próprio livro didático faz alusão a eventos que relacionam temporalidades distintas em um mesmo conteúdo. Além disso, uma história se cria a partir do contato entre o leitor e o enredo. E no caso da História, é fundamental compreender a organização narrativa desses marcos temporais. Isso faz parte de uma educação do olhar, necessário para a compreensão dessa narrativa. Mas há outros elementos além dessas marcações de tempo. Os próprios eventos, mesmo considerando sua especificidade em função da narrativa, além de sua singularidade como acontecimento, precisam ser percebidos em sua relação com o passado e o futuro. Uma narrativa é um texto que precisa apresentar coerência e coesão. Há uma estrutura que retoma elementos para que a própria familiaridade com as informações já adquiridas, contribua para a compreensão dos sentidos propostos.
Portanto, o significado se produzirá pela interação dessas informações, que pressupõe a atenção do leitor/espectador a elas. Então, quando a senhora da Sociedade de preservação de Hill Valley interrompe o beijo de Marty e sua namorada para que ele contribua para consertar o relógio da torre, é como se o roteirista estivesse dizendo ao público do filme: “prestem atenção, porque essa informação que estou te passando vai ser importante para que tu compreendas o que depois ocorrerá”. Afinal, o que uma narrativa sobre o passado pretende? Será apenas nos informar sobre o que aconteceu numa linha sucessiva e linear de eventos? Certamente não.
Em um livro de História da Educação Básica, por exemplo, os capítulos vão formando uma rede que se retroalimenta narrativamente. Os elementos que compõem a descrição dos eventos de capítulos anteriores vão ser retomados em seguida, formando arcos temporais, indicando continuidades, e ressaltando mudanças. É o que vemos inúmeras vezes em “De volta para o futuro”. Não só no discurso e nas situações dramáticas, mas nos aspectos físico-geográficos. Vejamos como exemplo a cidade de Hill Valley. Seria interessante mostrar aos alunos as duas sequências em que a cidade de 1985 e 1955 se espelham. Inclusive, até mesmo os ângulos de câmera são semelhantes. Seria válido perguntar a eles o que mudou e o que permaneceu na comparação entre esses dois tempos. Instigando-os a investigar as razões para as possíveis continuidades e descontinuidades.
Outra atividade bem interessante pode ser questionar os alunos (quem sabe depois de trabalhar com eles o conceito de foreshadowing) sobre todas as situações mostradas no filme para provocar o espectador a comparar futuro e passado. Portanto, tudo aquilo que podemos chamar de rimas visuais. Eu diria que esse é um ponto essencial de uma sequência didática construída a partir desse filme, porque pode levar o aluno a pensar e compreender a própria dinâmica de construção das narrativas históricas. Sejam elas ficcionais ou inspiradas em fatos reais, sempre que se busca uma impressão do tempo, como escreveu Andrei Tarkovski, é dessa relação entre passado-presente-futuro que se nutre o narrador em sua descrição.
Ainda em relação aos marcos temporais, pode-se trabalhar com os alunos como o personagem de Marty percebe que realmente se trata do passado depois que viaja no tempo. Para daí, quem sabe, se propor uma outra questão: que elementos do nosso tempo presente, em nossa cidade, diria a um viajante do futuro, o ano e o contexto em que vivemos. O que estaria fadado a não mais existir no futuro, e por quê? Esse suposto exercício de futurologia é também realizado pelo filme. Quando no final, na última sequência, o Dr. Brown retorna do futuro, mostra a Marty que no ano de 2015, para quando ele havia ido, os carros não precisariam dos combustíveis que usavam em 1985. Ele se utiliza de uma série de objetivos (orgânicos e inorgânicos) que estavam depositados em uma lixeira e os joga no tanque do carro. Como já estamos em 2020 e ainda usamos combustível fóssil, podemos propor um debate sobre isso. Ou seja, como as previsões são baseadas em expectativas que temos do futuro, que nem sempre se realizam. E seria interessante pensar por que não.
Um provérbio russo diz que o passado é tão incerto quando o futuro. É uma bela ironia. Porém, às vezes é muito difícil mesmo imaginar o futuro. O Dr. Brown havia debochado de Marty quando este lhe informou que o presidente dos Estados Unidos em 1985 era Ronald Reagan. Mas quando viu a filmadora trazida por Mcfly do futuro, falou: “não é à toa que o seu presidente é ator, tem que aparecer bem na TV”. Sinal dos tempos.