Construindo uma linha do tempo com o cinema
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De volta para o futuro
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“O osso virou uma nave”: compreendendo a representação do tempo e aprendendo a pensar historicamente.


Interrompi a postagem anterior como em um corte que sugere a continuação da história. Então, vamos a ela. Encaminhei as discussões em torno da montagem da linha do tempo com as sequências dos filmes justamente para que pudéssemos avançar ao passo seguinte: usar essas imagens em movimento para levar os alunos a compreender a representação do tempo e aprender a pensar historicamente com base nessas representações. A proposta de criar um arco narrativo a partir de dois eventos registrados na linha do tempo que construímos na aula anterior, serviu para que eu demonstrasse que a história é constituída de um enredo que liga passado, presente e futuro. Todavia, os filmes podem suscitar discussões sobre a própria natureza do tempo e o caráter de continuidade/descontinuidade das coisas.
 

Sendo assim, exibi alguns trechos de filmes para que pudéssemos refletir sobre como a aprendizagem histórica não tem a missão de reter conhecimentos sobre o passado, e sim, perceber a presença de múltiplas temporalidades em nossa experiência. O objetivo dessa dinâmica foi instigar o raciocínio histórico do aluno e descontruir a ideia de que o conteúdo de História é atrelado a um passado imóvel e unidimensional, que não precisa ser pensado.

Lembro sempre que essa pesquisa nasceu da insistente fala dos alunos, referindo-se ao conhecimento histórico como algo relativo apenas ao passado. Pensando assim, eles acabam por não operar as interações necessárias entre os tempos, que precisa acontecer para que se forme uma experiência que afete a consciência histórica. Ou seja, o não desenvolvimento de uma competência narrativa condena o estudante de história a realmente não ver sentido no seu estudo, e nada de proveitoso, em termos de orientação prática, poderá se produzir a partir dessa frustrante e inócua experiência.
 

Faço aqui um pequeno relato à respeito da discussão que travamos em sala de aula a partir de uma famosa cena do filme 2011: uma odisseia no espaço. E aproveito para mencionar que na seção “filmes” deste site, há um texto abordando a representação do tempo na obra, e sugerindo encaminhamentos didático-pedagógicos. Contudo, na dinâmica que narro aqui, usamos apenas um trecho do filme, que já nos foi mais que suficiente para uma proveitosa reflexão.

Lançado em 1968, exatamente um ano antes da chegada da missão tripulada estadunidense à lua, 2001: uma odisseia no espaço segue a divisão clássica de três atos. No primeiro, é mostrado o cotidiano de um grupo de primitivos ancestrais humanos; no segundo, uma viagem à lua e no terceiro, uma expedição com destino aos arredores do planeta Saturno. Sendo assim, tomando como referência o ano em que o filme chegou aos cinemas, apresenta-se o passado e o futuro nas telas. O contexto de sua produção era o do intenso avanço das tecnologias que pretendiam levar o homem ao espaço, o que foi conseguido e repetido algumas vezes nos anos seguintes. No entanto, o futuro imaginado para 2001 não se concretizou, pois deslocamentos aparentemente comuns no espaço, como o filme sugere, não se confirmaram. Em 1972, a nave Apolo 17 foi a última tripulada a tocar o solo lunar. O ano de 2001 era futuro para os produtores do filme, mas já é passado para nós. Portanto, sabemos o que aconteceu e o que não aconteceu, o que nos permite pensar sobre como a experiência da época produziu as expectativas que aquelas pessoas criaram, e estabelecer paralelos entre o nosso tempo e aquele.

 
Exibi a sequência que vai da parte final do primeiro ato ao início do segundo, perfazendo 6 minutos e 54 segundos, mostrando a passagem da pré-história às viagens espaciais. Como é amplamente conhecido por quem viu o filme, há um brusco corte elíptico na transição entre esses dois momentos. Vemos um “homem-macaco” lançar um pedaço de osso para cima, e no plano seguinte, uma nave com formato similar, plainando no espaço, tendo o planeta Terra ao fundo. Após a exibição desse trecho, perguntei o que aconteceu na sequência, e um dos alunos, de maneira espirituosa, respondeu que o osso virou uma nave.
 
Expliquei que talvez fosse isso mesmo que o diretor do filme queria, que pensássemos nesse efeito, mas certamente nós sabemos que essa “transformação” não aconteceu bruscamente, como vimos no filme. Então a questão seria: quantos anos se passaram entre os tempos mostrados? Quanto tempo demorou para que saíssemos daquele estágio do desenvolvimento biológico para o ponto em que erámos capazes de enviar um objeto tripulado para o espaço? A finalidade desta pergunta foi investigar como eles raciocinavam historicamente no sentido de “preencher”, ao menos aproximadamente, o espaço de tempo suprimido entre os dois eventos vistos na tela.
 
Como havia imaginado, as opiniões variaram bastante, mas nenhuma delas se aproximou dos 4 milhões de anos que separavam a aurora da humanidade, como chamou Arthur C. Clarck, autor do livro homônimo lançado concomitantemente ao filme, do apogeu da civilização que começava a se lançar para além da Terra. A maioria dos alunos cogitou a passagem de apenas alguns milhares de anos entre uma situação e outra mostrada no filme. Com base naquilo que discutimos a partir da linha do tempo, pedi para que eles relacionassem os dois eventos, e perguntei de que forma poderíamos estabelecer uma aproximação entre as situações (tempos) mostradas no filme.
 

Combinamos que eu iria projetar novamente a sequência, para que pudessem lembrar de mais detalhes das cenas. Assim o fiz. Logo após a segunda projeção, perguntei o que havia mudado na comunidade dos “homens-macaco”. Segundo relato dos alunos, surgiu um objeto estranho (referiam-se ao monólito deixado por uma civilização mais avançada) que se seguiu a uma luta. Durante esse conflito, um dos personagens usou um pedaço de osso como arma, e depois viu que poderia usá-la para caçar, ou seja, percebeu que possuía uma ferramenta. Segundo eles, aquela ferramenta deu a quem a segurava uma ascendência sobre os outros, pois detendo a arma e o entendimento de como usá-la, passou a governá-los. A partir daí, começarmos a tentar entender as mudanças sociais que se processariam, para logo a seguir, tratarmos do contexto da produção do filme, realizado em plena Guerra Fria.

Expliquei que o filme foi feito durante o momento de acirrada rivalidade entre Estados Unidos e União Soviética, e que havia uma disputa muito intensa pela tecnologia espacial. Portanto, quem a dominasse primeiro, levaria vantagem sobre as outras nações. Que a tecnologia também é uma arma. Um dos alunos percebeu imediatamente onde eu queria chegar e falou que a nave parecia com uma arma. Falei que, de certa maneira é como se aquela arma primitiva tivesse se transformado na estação espacial que vimos no ano de 2001 (tempo da narrativa do filme). Porém, o que levou a humanidade do osso ao espaço? Certamente, o avanço da tecnologia, que não se dá de uma hora para outra, mas ao longo de milhões de anos. E cada etapa dessa aventura vai criando outras possibilidades. A cada nova experiência, surgem novas expectativas, portanto.

Para aprofundar um pouco a discussão, conversamos sobre como os historiadores, ao tratarem das várias disputas entre americanos e soviéticos no pós II Guerra Mundial, utilizam os conceitos de corrida espacial e corrida armamentista para classificar esses dois aspectos daquele contexto. E o filme foi feito naquele tempo, e acaba por refleti-lo. Se pensarmos bem, falei para eles, o desenvolvimento das armas e da tecnologia espacial estavam profundamente relacionados, pois a corrida para o espaço não consistira apenas em chegar à lua, mas em posicionar satélites que espionasse o inimigo, além de servirem para localização de possíveis alvos a serem atingidos.

Não é possível conceber a ideia de que aproveitar um pedaço de osso como arma levaria a imaginação de todas as possibilidades futuras decorrentes daquele avanço. É por isso que não podemos estudar história apenas olhando do presente para o passado. Temos que compreender como, em cada estágio desse desenvolvimento, passado e futuro estavam relacionados as ações do presente. Pois cada presente, reconfigura e ressignifica tanto a memória como o porvir. Ou seja, cada presente, tem seu passado e seu futuro. Cada tempo é um estrato dessa multitemporalidade. Para finalizar, lancei um desafio e tanto: “o que mudou e o que permaneceu nesses 4 milhões de anos que separam esses dois momentos históricos?”

A aparente impossibilidade de pensarmos alguma semelhança entre tempos tão distintos, realmente dificulta uma aproximação entre nós e aqueles nossos ancestrais tão distantes. Mas só foi preciso um pequeno passo, como diria Neil Armstrong. Uma das alunas observou que desde aquele tempo o ser humano já brigava entre si. Acrescentei que eles disputavam poder, e esse poder, como havia dito anteriormente, dependia do conhecimento. Por isso sempre buscamos conhecer mais. O conhecimento transforma a nossa vida. Reconheceram que essas transformações estão se dando em um ritmo mais acelerado. Então, aproveitei para chamar a atenção para o fato de isso também ser uma mudança, uma singularidade. Embora, em outros momentos da história, as pessoas já tenham sentido essa aceleração. Percebemos também, lembrando a oficina anterior, que a cada nova descoberta o ser humano cria novas expectativas, e isso sempre acontece, em qualquer época. É um erro comum, pensar na tecnologia como algo recente na história.

Em verdade, as maiores invenções e que mais alteridades causaram em nossa vida, surgiram na pré-história, como a escrita, a roda, o domínio do fogo e as técnicas agrícolas. O desejo de saber mais, impulsiona a humanidade. Isso é algo que permanece até hoje, não somos assim tão diferentes dos nossos antepassados nesse sentido. As nossas expectativas permanecem ou se alteram também de acordo com nossas experiências. Não parecia haver dúvidas para aqueles que viviam no final da década de 1960, de que chegaríamos em outros planetas no início do século XXI. No entanto, já estamos em 2019, e nem temos ideia de quando isso poderá efetivamente acontecer.

Jörn Rüsen diz que competência narrativa é a competência essencial da consciência histórica, e está relacionada a habilidade de atribuir um sentido ao passado. Para o autor, são três os elementos que compõem a narrativa histórica: a forma, o conteúdo e a função. Quando elaborei essa dinâmica com o filme “2001: uma odisseia no espaço”, meu objetivo foi tentar perceber como cada um desses elementos interferem e interagem no processo de aprendizagem do aluno a partir do contato com a narração fílmica.

No que se refere a forma, observei como os alunos compreendiam aquele passado, que significado poderia ser produzido a partir da interpretação dada pela sequência vista no filme. Eles se sentiam de alguma maneira uma continuação daqueles “homens-macaco”? Quando contei-lhes o número de anos que havia passado entre a imagem da pré-História e a do século XXI, aqueles primórdios da raça humana pareceram outro mundo completamente distinto do nosso. Porém, ao longo da conversa, fomos tentando aproximá-los. É justamente quando estabelecemos um vínculo entre passado, presente e futuro que esse conteúdo se concretiza como elemento da competência narrativa. Assim, quando envolvemos no mesmo enredo o osso e a nave espacial, fizemos justamente a aproximação desse longo tempo de 4 milhões de anos. O osso que virou a nave, nas palavras do aluno, pode ser visto como um metáfora para todo um conjunto de transformações e aproximações que passamos a perceber e significar, ou seja, segundo Rüsen, passamos a ter uma experiência do tempo.

Quando trouxemos à tona a Guerra Fria, o que fizemos? Exatamente aquilo que Jörn Rüsen vai definir como sendo a finalidade precípua do ensino de história: produzir um sentido de orientação temporal. Ao pensarmos sobre a tecnologia, que aproximou narrativamente (não só a narrativa do filme, mas a nossa durante o debate) a contemporaneidade da ancestralidade humana, discutimos as vantagens e as desvantagens do avanço tecnológico. Ou seja, pensamos em algo prático, que está permeando a nossa vida hodiernamente. Afinal, uma sequência que chamou bastante a atenção deles foi a dos homens “pré-históricos” admirando o monólito. Lembrei que utilizamos hoje um objeto menor que possui as mesmas proporções que aquele no filme, para o qual ficamos olhando quase o tempo todo. Seria o aparelho celular o monólito do século XXI?

Sendo assim, a função da narrativa histórica está relacionada a produção de um sentido de orientação. Todavia, pressupõe o reconhecimento e a intepretação da experiência temporal. A partir do exemplo que vimos no filme, reconhecer as diferenças entre o passado e o presente; identificar a existência de tecnologia em um passado remoto, relacionando-o com o presente, e aprender a considerar o que produzimos historicamente. Em resumo, compreender o passado, relacioná-lo ao presente e elaborar um aprendizado que nos permita aplicar essa reflexão em nossa vida.

Lidar com as narrativas históricas em sala de aula, é confrontar a temporalidade da coisa narrada e da própria narração, com a experiência dos alunos. Produzir um aprendizado pela interação entre os tempos inerentes a narrativa e o tempo do aluno contribui para que ele possa atribuir um sentido para esse aprendizado, por dois motivos essenciais: evidencia-se a continuidade da narrativa, ou seja, a história não é passado; e mais importante: desse processo ele é parte constituinte. Compreender a passagem do tempo, pela narração, é compreender a si mesmo.

Por ser uma linguagem audiovisual, uma tecnologia relativamente nova na escala de produção de saberes, o cinema referencia todos os outros formatos de narrativa. Ao associar sim, imagem e texto, formas reconhecíveis de transmissão de conhecimentos, torna mais realista a comunicação e a impressão de realidade. Ao mesmo tempo que alimenta, à princípio, o caráter atual na representação de outros tempos. Nas imagens de lutas medievais ou de naves passeando entre prédios, o que se vê é a potencialização do imaginário humano, projetado a partir dos fragmentos do que não existe, para além do que eles significam ou querem significar.

Por que o uso do filme em sala de aula é um potencial meio de desenvolver o raciocínio histórico? Porque, independentemente de ser uma narrativa histórica, o filme traz em si, uma representação visível da passagem do tempo, da transição e do diálogo entre passado, presente e futuro. É um exercício narrativo que estimula a percepção de como esses tempos dialogam. Em se tratando de representações de eventos históricos, o filme permite pensar como o presente produz um sentido sobre o tempo, na medida em que diz sobre o passado ou sobre o futuro aquilo que é reflexo do agora.

Isto posto, é indispensável que se reconheça que, mesmo os filmes que não se prestam a ser narrativas sobre fatos passados (a história no cinema), todo filme é um documento de sua época. Sendo assim, em uma obra dita de ficção, e talvez até principalmente nelas, o tempo que a produz diz muito sobre si mesma. Ao vermos um filme como “Se meu apartamento falasse” (1960: dir.: Billy Wilder), em que não se constrói uma narrativa histórica propriamente dita, tem-se a evidência de um tempo trazido à tona. O hábito de usar chapéus, os costumes, o antigo forno micro-ondas, os tabus na sociedade estadunidense sobre adultério, fazem desse tipo de registro um artefato imagético que pode ser usado em sala de aula para estimular o debate em torno das alteridades e permanência como formas de caracterizar a passagem do tempo. Nesse sentido, como registro documental do tempo, o filme é um instrumento pedagógico em potencial para se estimular o raciocínio histórico como o ato de relacionar passado e presente. Quem ver filmes como esse, desenvolve hábitos de comparar esses tempos, “de saber como era no passado”, que independem de práticas escolares, posto que a maioria dos filmes não são produzidos para o uso nesses espaços de construção de conhecimento. Embora possam encontram neles um meio para sistematizar e estimular esse tipo aprendizagem.

Nas postagens seguintes, vou mostrar como usei dois filmes: “Vida Maria” e Conflito das águas” para instigar nos alunos a percepção das alteridades e permanências na narrativa histórica, buscando ver sempre no presente aspectos que se relacionam a nossas experiências e expectativas, e de como nossa vida é permeada por estratos do tempo, ou seja, a convivência daquilo que o historiador Reinhart Koselleck chamou de singularidades, repetibilidades e transcendências.

 

De certa forma, ao final de nossa dinâmica, ficou entendido que cada um desses fatos, em especial os dois que escolhemos para relacionar, tem seus passados, seus presentes e seus futuros. De cada um desses pontos, é possível traçarmos linhas do tempo, relacionando-os com outros fatos, e também pensando sobre como repercutem até hoje. Esse debate sobre viagens espaciais e pré-história me instigou a alargar essa discussão e pensar numa forma de aprofundarmos alguns aspectos, como a compreensão do tempo na narrativa a partir da leitura dessa retroalimentação dada entre experiências e expectativas. A partir daí, dei início aos debates sobre as percepções de alteridade e permanência com a exibição de sequências de filmes, como por exemplo, a obra 2001: uma odisseia no espaço. Mas essa experiência será relatada na próxima postagem.

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