Tapete Vermelho
janeiro 7, 2020
Vida Maria
janeiro 7, 2020
 

O futuro é passado no presente: O amanhã como experiência


No plano de abertura do filme “A chegada” ouvimos uma voz nos dizer “Eu pensava que esse era o começo da sua história. A memória é uma coisa estranha, ela não funciona como eu imaginava. Somos tão presos ao tempo, à sua ordem.” Essa é uma das muitas peças que o enredo irá pregar no espectador que ainda estiver preso a um tempo linear, que corre da esquerda para a direita, orientado por àquela seta que vimos em tantos livros de História, e que nos mostrava a ordem dos acontecimentos humanos. Mas, no decorrer do filme, iremos perceber que o sentido do tempo vai muito além do modelo que nos separa do passado e do futuro.
 

Não demora para que saibamos que as palavras que introduzem a narrativa são da professora de Linguística Louise Banks, que vemos segurar a sua filha, recém nascida, em um hospital. Em poucos segundos, é mostrado um resumo da vida dela, brincando e discutindo com a mãe, que, enfim, chora a sua perda. Direto da mente de Louise, uma sentença: “agora não sei se acredito em inícios e fins, alguns dias definem a sua história além de sua vida”. Um desses dias chega para ela logo que adentra em sua sala de aula, na sequência seguinte do filme. Estranha a ausência da maioria da turma, mas resolve dar início à aula, quando é aconselhada por uma aluna a ligar a TV no noticiário. Então, descobre o que provavelmente o resto do mundo já sabia: objetos não identificados pousaram em vários lugares da terra.

Como referência em sua área de atuação, a doutora Banks será uma das pessoas selecionadas pelo governo dos Estados Unidos, em conjunto com o físico Ian Donnelly, para estabelecer uma comunicação com os alienígenas, assim como está sendo tentando através de uma série de estratégias em outros países, nos quais as doze naves pousaram, entre eles, Rússia e China, que ao lado dos Estados Unidos, comandarão o desenrolar dos eventos narrados no filme. Inclusive, incialmente é montado uma rede colaborativa entre cientistas e militares para que os progressos de cada um sejam compartilhados e com isso, agilizem o avanço das descobertas, que se moverão no sentido de entenderem a presença dos aliens na terra.
Obter sucesso na interação se mostra uma missão difícil porque os visitantes usam uma forma de grafia circular muito diferente da nossa e que, como logo perceberá a Dra. Banks, não representa os sons de sua fala, mas a maneira como eles pensam. Portanto, seria preciso que eles também entendessem tanto a natureza do nosso pensamento, como possuíssem algum conhecimento de nossa simbologia linguística para que se pudesse operar uma interação significativa. Seria necessário, não só fazer as perguntas corretas, mas usar os mecanismos adequados para obter as respostas mais precisas. Pensar como eles para entender aquilo que eles querem dizer.
 

Enquanto avançam as comunicações, várias questões continuam sendo discutidas pela opinião pública e os meios de comunicação, como a justificativa para a escolha dos locais onde as naves pousaram, porque exatamente doze delas, e quais seriam as atitudes mais corretas a serem adotadas caso os contatos amistosos não resultassem em nada concreto. Um frenesi toma conta do mundo, e enquanto alguns exibem faixas de pedido de socorro aos seres extraterrenos, outros sugerem que sobre as naves devam ser atiradas bombas atômicas. Ideia que passa a ser seriamente considerada quando se descobre que o desejo dos aliens é de fornecer uma “arma” aos habitantes do planeta Terra.

Entretanto, como se esforça para esclarecer a Dra. Louise Banks, o vocabulário fornecido teria sido ainda muito insuficiente para uma comunicação mais sofisticada, e a palavra “arma” poderia ter uma conotação muito ampla, podendo significar para os aliens algum tipo de ferramenta ou conhecimento que eles desejavam entregar a humanidade. Na opinião dos militares de algumas nações, em especial os da China, seria muito perigoso arriscar, e aos poucos começam a adotar uma atitude mais beligerante em relação a presença alienígena, no que são prontamente seguidos pelos russos. Ambos entendem que o fornecimento dessas “armas” poderiam ser uma maneira de colocar os países uns contra os outros, aumentando a letalidade de um conflito que teria como intenção eliminar os habitantes da terra, ou tornar os seus sobreviventes mais facilmente dominados. Nesse momento, a tensão é aumentada porque são cortadas as relações de colaboração entre os países onde as naves estão localizadas, o que diminui potencialmente as chances de progresso nas tentativas de comunicação.

Todavia, desde os primeiros contatos com as criaturas, Louise vem tendo sonhos e visões estranhas, de situações não vividas, mas que parecem ser de experiências reais. Ainda desorganizadas e fluidas, conforme avança sua compreensão da linguagem alienígena, essas visões vão se tornando mais claras, criando conexões umas com as outras, permitindo a ela começar a perceber que à medida em que compreende melhor aquilo que significam os símbolos gráficos, sua forma de pensar vai se modificando. Ela começa a ver o seu futuro. Ou melhor dizendo, começa a enxergar o tempo de maneira a eliminar a barreira entre os conceitos lineares de passado, presente e futuro, e entende, enfim, qual é a arma que os aliens querem nos fornecer.

Depois de voltar a nave, já sendo capaz de processar o pensamento deles, Louise compreende a mensagem. Na verdade, teriam vindo fornecer a humanidade uma ferramenta essencial para a sua sobrevivência, e que permitiria também, depois de três mil anos, que ela própria pudesse ajudá-los. É a linguagem deles que está sendo ofertada a nós, uma arma que nos dá uma outra compreensão sobre o tempo, uma nova maneira de se comunicar, que permite enxergá-lo de forma não mais pautada na sucessão passado-presente-futuro.

O espectador mais atento poderia imaginar o porquê de tudo isso está acontecendo. Pois se eles precisariam de nossa ajuda no futuro, porque não ensinar logo aquilo que precisaríamos saber? Pois certamente, já que enxergam o tempo como um todo, já conheciam o futuro. Porém, a intenção, assim como percebe a Dra. Banks, é instigar a nossa cooperação, o trabalho coletivo para salvação de nossa espécie. Seria preciso superar nossas rivalidades históricas e pensar no futuro de toda a humanidade. Sermos capazes de aprender de maneira colaborativa e olhar para o nosso futuro, assim como nossas ações são influenciadas pelas experiências do passado. Uma visão, portanto, multitemporal.
 

Mas são justamente essas experiências do passado que ajudam também aos aliens entender de que maneira eles iriam nos abordar. A nossa história foi a chave para que eles entendessem as nossas forças e fraquezas, nossa capacidade de autodestruição, assim como de superar obstáculos ao longo do tempo. O filme não tem a preocupação de explicar todas essas simbologias, mas fornece as pistas para que as entendamos, e nos convida a pensar também de uma forma circular, para que o futuro explique o presente, e o passado seja revisitado não como exemplo, mas como esforço para que pensemos os significados atribuídos a passagem do tempo.

Senão vejamos alguns exemplos. O fato de serem doze naves, faz alusão ao número de apóstolos de Cristo, aqueles que trazem a mensagem de salvação, remetendo a religiosidade da maioria dos habitantes da terra. Jesus, conforme escrito no livro de Mateus, capítulo 10, ordena aos apóstolos qua deem preferência as ovelhas perdidas. Essa é a chave para compreendermos também qual o motivo que justifica a presença das naves naquelas regiões especificamente, posto que são justamente os países que apresentam mais dificuldade de conciliação, e que o roteiro faz questão de ressaltar, pois, por mais que divaguem sobre o porquê daqueles locais terem sido escolhidos, não chegam a uma conclusão sobre tal propósito, pois não fazem uma leitura consequente de suas rivalidades.

Isso já abre uma brecha para pensarmos como um filme dialoga com o seu tempo de produção. Visto no futuro, esse pode ser um elemento do enredo que exija um conhecimento de história do início do século XXI, pois a Venezuela e o Paquistão estão entre os países que receberam as naves, e que, geopoliticamente, ocupam posições estratégicas no jogo de xadrez global nesse momento em que vivemos, mas que pode dificultar a interpretação para alguém que, em um futuro distante, viva em um mundo que apresente outra configuração. Entretanto, de acordo com o enredo, sugere-se que dessas regiões partiria uma ameaça letal ao planeta, por isso, seria necessário que procurassem, de alguma forma, trabalharem juntas. Em outra passagem, vemos os chineses (que enfrentam uma guerra comercial com os Estados Unidos, país onde o filme foi produzido) sendo mostrados como inimigos de uma cooperação internacional. O general Shang, personificação da China no filme, é mostrado como obtuso, e adepto da solução armada. No que é seguido pelos russos, o que não deixa de ser uma provocação a Moscou.

Voltando a simbologia do número doze, ele está relacionado a vários aspectos do tempo. O dia tem dois períodos de doze horas. O calendário tem doze meses, o relógio também contabiliza doze horas de cada vez. Na música há doze notas cromáticas, assim como são doze as matrizes de cores primárias, secundárias e complementares. É o número associado ao zênite do sol, momento em que atinge o ponto mais alto (às doze horas), e que lhe permite iluminar com mais intensidade. Para a Cabala, o número doze mexe com a sensibilidade das pessoas, tornando-as também mais suscetíveis a renúncia das paixões. De acordo com uma tradição coreana, o mundo se divide em doze regiões.

Saber o que aconteceu com a humanidade até aquele ponto, suas tradições, sua cultura, suas crenças, ou seja, sua história, foi fundamental para que os aliens pudessem entrar em contato conosco. Saber o que aconteceria no futuro, os motivou a nos procurar, mas a abordagem dependeu necessariamente do nosso passado. Aquilo que nós fomos, seria o caminho para intervir naquilo que somos, inclusive a nossa incapacidade de enxergar o tempo além da simples presença de outros tempos em nossa vida. Estudar nosso modo de vida, perceber que somos seres acostumados a nos digladiar, competir, sugere a ideia de que eles precisavam compreender isso, para que pudessem agir no presente. Os aliens usaram a experiência do nosso passado para compreender quem nós somos. Mas, entre os humanos, ao contrário, vemos esse mesmo conhecimento sendo utilizado para nos afastar, para acentuar nossas diferenças, ao invés de nos permitir superá-las.

Em um diálogo travado no QG das operações estadunidenses, um alto funcionário do governo faz referência direta a isso quando defende que a intenção dos aliens seria dividir os seres humanos para que fossem mais facilmente controlados. Por isso, desejavam fornecer armas. A linguista rebate, afirmando não haver nenhuma prova nesse sentido. O burocrata responde que basta ler os livros de História, e cita a dominação inglesa na Índia, e a presença imperialista alemã em Ruanda, como exemplos. Esse é um ponto fundamental, pois mostra como a leitura que vai orientar as ações do presente são as dos exemplos do passado, enquanto os aliens, mesmo utilizando-se dele, desejam que nos orientemos também pelo futuro.

Pois, saber o que vai acontecer muda nossa perspectiva à respeito daquilo que vemos. O próprio filme vai servindo como metáfora dessa discussão que propõe. Já que eventos do que aparenta ser o futuro vão sendo antecipados, e exigindo que nos apropriemos dessas pistas para que compreendamos para onde o enredo nos leva. Aliás, é uma experiência semelhante a quando vemos um filme pela segunda vez, pois não o veremos da mesma maneira. Nossa perspectiva do filme se altera. É normal que aceitemos a ideia de que vamos acumular mais percepções e que coisas antes não percebidas podem ser somadas ao antes já assimilado, compondo então uma visão mais abrangente da obra. Isso certamente contribui para que a experiência seja ressignificada. Mas, pouco se considera como questão fundamental que, vemos o filme de uma maneira distinta quando o estamos revendo, porque já sabemos o final. Passamos a acompanhar a história de uma perspectiva multitemporal, e ao mesmo tempo palindrômica, pois a enxergamos também a partir do futuro em direção ao presente e ao passado. Saber o que vai acontecer, altera como entendemos o presente, e ressignifica a experiência produzida pela memória do passado.

Assistir ao filme novamente me causou essa sensação e me levou a propor as reflexões que aqui venho expor. Quando o vi pela primeira vez, enxerguei-o como a maioria dos personagens, querendo saber o que iria acontecer, mais preocupado em antecipar minhas prováveis atitudes com base nas experiências do passado. Tive muita dificuldade de entender algumas passagens, principalmente as que mostravam as visões do futuro que Louise passou a ter depois de começar a aprender a linguagem alienígena. Quando vi pela segunda vez, larguei minha percepção linear, e procurei enxergar a circularidade temporal da obra, o que altera completamente seu significado. Ou seja, não estar preso a uma ordem do tempo, dá a sua passagem um outro sentido, uma nova maneira de fazer interagir passado, presente e futuro. Ao segurar sua filha nos braços, logo nos primeiros minutos do filme, Louise dizia “volta pra mim”. Essa atitude simplesmente não pode ser compreendida se não sabemos o que vai acontecer depois. Pois a personagem tem uma lembrança do futuro.

 

Saber o que uma narrativa vai apresentar em seu desfecho altera a forma como significamos a ordem do tempo. Esse não é um fenômeno incomum, muitas pessoas compram revistas que fazem um resumo do que acontecerá no enredo das novelas durante a semana seguinte. Outros assistem vídeos com spoilers de filmes que ainda verão. Certamente essas pessoas não passarão pelas mesmas experiências que aquelas que não sabem o que acontecerá nessas histórias. Mas isso é geralmente o que ocorre quando estudamos história na escola, ou não é? Quando olhamos para o passado, em geral, sabemos onde chegamos. O presente singulariza a experiência do passado, principalmente quando queremos que esse passado justifique nossas ações no presente. A maneira como alguém percebeu os eventos históricos da década de 1970 sendo deles contemporâneo, será diferente de que os veem hoje, pois podemos olhá-los à luz de suas consequências, que é o que fazemos quando geralmente estudamos história.

Esse é um ponto de reflexão importante, pois quando investigamos o passado, obtemos respostas a partir de perguntas que nós mesmos formulamos. O outro, aquele ser do passado que dizemos estudar não é compreendido em seu próprio tempo, com sua forma de ver o mundo, em sua própria maneira de enxergar o espaço-tempo. Talvez um esforço para compreendê-los nos ensinasse mais do que obter as respostas que queremos. E é justamente isso que permite que o método empregado por Louise obtenha resultado.

Antes de ter autorização para aprofundar as comunicações com a nave, a Dra. Banks explica que se querem saber qual o propósito dos aliens aqui na terra, é preciso saber se eles entendem o que é a natureza de uma pergunta. Se são seres que agem com intenções e não instintivamente, para que também possam compreender o conceito de propósito. Se pensarmos bem, muitas vezes, quando tentamos nos comunicar com o nosso passado, deixam de considerar a criação de uma ponte com ele, uma espécie de zona de aproximação temporal. A um tempo, ás vezes estranho a nós, podemos estar esquecendo de perguntar: “qual o propósito de vocês aqui na terra?” Por isso compreender o passado, não explica o presente, mas pode nos ajudar a formular as perguntas certas para o nosso tempo. Da mesma forma, o futuro para nós é um ser alienígena, para o qual, também devemos fazer perguntas.

De acordo com o que é apresentado no filme, a linguagem está diretamente relacionada a forma como vemos o mundo. Segundo proposto nas teorias dos linguistas Edward Sapir e Benjamim Lee Whorf, e conhecida como hipótese Sapir-Whorf, aprender a decodificar os signos de outra língua altera nossa maneira de pensar, pois acrescenta conceitos e percepções de mundo antes desconhecidos. No caso, a decodificação dos logogramas circulares, fez com que Louise visse o tempo de maneira circular, não mais preso ao ordenamento passado-presente-futuro. Ou seja, aprender uma língua diferente fez com que ela pensasse de uma forma diferente, já que precisou encarar uma estrutura de representação simbólica do mundo que sua cultura original não utilizava. Como afirma Louise, o que eles nos deram “não é uma arma, é um presente. A arma é a língua deles, eles deram ela pra gente”. E, “se você aprende, aprende de verdade, você começa a entender o tempo do mesmo jeito que eles.”

Essa é outra possível metáfora para a nossa relação com o passado, ou até mesmo com outros seres humanos, que, embora contemporâneos, possuem outras concepções de tempo. Procurar compreender o passado pode nos fazer pensar de forma diferente. Assim, conhecermos uma civilização distinta da nossa, que pode não ser de um passado, mas de uma cultura que vive uma distinta temporalidade, como os índios, por exemplo, pode afetar positivamente nosso modo de viver. Pensar em um equilíbrio coexistencial entre essas culturas, sem eliminar suas identidades, é um dos desafios de um mundo que globaliza, mais do que acesso a mercadorias, suas experiências. Aliás, o número doze também possui o sentido de promover o equilíbrio. Por isso, torna-se fundamental escolher as estratégias corretas para promover uma comunicação.

 
Enquanto os americanos usam a linguagem da ciência (Física e Linguística), o filme mostra os chineses optarem pela utilização de um antigo jogo de tabuleiro, o Mahjong. Além de ser mais uma oportunidade de os roteiristas desqualificarem a China, na guerra simbólica que caracteriza a representação cinematográfica, evidenciam que o uso de linguagem foi uma estratégia errada porque o jogo, uma forma de disputa, portanto, ressalta a ideia de oposição. O que sugeriu a ideia de uma má intenção por parte dos visitantes. Portanto, uma falha de comunicação resultado da escolha incorreta de uma abordagem, de um método.
 
 

Isso serve para que pensemos como os sinais do passado muitas vezes são incompreendidos porque os vemos com as “armas” que a ele fornecemos. Muitas vezes, as ferramentas que usamos para estudar a história, concebidas no presente, condicionam as respostas que obteremos. Assim, ao final, corremos o risco de estarmos apenas falando de nós para nós mesmos, o tempo como a expressão de nossas experiências e expectativas, sem jamais considerar aprender sobre as experiências e expectativas dos outros. Quais são as expectativas do futuro em relação a nós? Quando estaremos dispostos e pensar em responder a essa pergunta? Quando estaremos dispostos a aceitar que isso também pode ser uma reflexão histórica? Quando olhamos para o passado, buscamos verdadeiramente aprender com as expectativas desse passado, ou apenas a ele dizemos o que aconteceu depois?

A perspectiva dos aliens é multitemporal, pois eles vivenciam os tempos conjuntamente, e não de forma a um suceder o outro. Portanto, eles simplesmente presentificam todas as experiências de tempo. Louise não aprende a falar como eles, mas aprende a pensar como eles. Sendo assim, cria o que chamei de zona de aproximação. No que se refere a nossa relação com o passado, não podemos trazê-lo até nós, não pode ele falar diretamente até nós, mas podemos aprender a sua linguagem e compreendê-lo. Esse filme também nos dar uma “arma”, uma ferramenta para refletirmos sobre a nossa concepção de tempo. Nele vemos que a forma como os aliens planejavam a vida era baseada em sua concepção de tempo. E incrivelmente, esquecemos que também fazemos isso. No ocidente, em geral, cremos em um tempo sucessivo, uniforme, teleológico, que orienta as ações do ser humano rumo a um progresso, seja da ciência, da cultura, ou mesmo em virtude de uma salvação espiritual. Nesse projeto, fazemos embarcar forçadamente todos os contemporâneos, imergidos numa mesma experiência cada vez mais homogeneizante.

No entanto, esse ideal de progresso, serve apenas para alimentar um mito de autorrealização. Uma vida plena de presente, abastada de satisfações. O futuro, nesse caso, é uma utopia vivida no presente. Pensar a partir de uma visão de futuro, poderia reorientar nossas ações. Conhecer as consequências das nossas irresponsabilidades com o planeta, por exemplo, poderia nos ensinar. Os aliens trouxeram para a humanidade a possibilidade de sua salvação, pois se pudéssemos enxergar o futuro e as consequências dos nossos atos, poderíamos evitar cometê-los. O que o filme “A chegada” propõe, afinal, é que reflitamos sobre a necessidade de uma nova experiência do tempo. A Dra. Banks chega a perguntar: “Ian, se visse toda a sua vida, do início ao fim, mudaria alguma coisa?”

Mas o filme é também uma metáfora para a nossa relação com o passado, pois, as civilizações antigas que viveram há milhares de anos, muitas vezes parecem alienígenas para nós. Escreviam e pensavam de uma maneira bem distinta da nossa. Seus aparelhos simbólicos, seu modo de vida nos causa estranhamento. Mas o que nos possibilita entender outro povo é procurar pensar como eles, compreender o passado procurando imaginar como as pessoas que viveram no passado; compreender o outro aprendendo a pensar como ele. Assim, ouvir também as pessoas do futuro, o que elas têm a nos dizer, o que esperam de nós. Para a nossa sobrevivência, talvez precisemos aprender a pensar temporalmente. Confesso que fiquei bem impactado com a maneira como o roteiro me levou a repensar minha concepção de tempo, e como Louise, agora “não sei mais se acredito em inícios e fins.”
 

Se observarmos as outras representações simbólicas apresentadas na construção visual da obra, percebemos que as criaturas alienígenas lembram árvores, que vêm oferecer a humanidade o conhecimento para sua emancipação como espécie. Louise e Ian, personificam Adão e Eva, a quem será revelado a verdadeira ordem do tempo e do universo, o todo formado simultaneamente pelo passado, presente e futuro, ou, o início, o fim e o meio. O nome da filha de Louise é Hannah, um palíndromo, como a própria estrutura narrativa do filme, que não possui uma distinção entre começo e fim. A trilha musical minimalista reforça o tom circular do roteiro, fazendo com que frequentemente sejamos afetados pelos sentimentos que nos reconduzem ao fluxo temporal da história. A profissão da protagonista também remete a figura de Santo Agostinho, filósofo e professor de retórica, que durante a Idade Média, produziu talvez a reflexão mais influente sobre o tempo de toda a história, fazendo uso, inclusive, de uma metáfora linguística para exemplificar a totalidade temporal como um jogo de presentificações.

Enfim, “A chegada” é a própria realização de seu projeto. Um filme para nos fazer repensar o que o tempo significa para nós, e como nós significamos o tempo. O passado, o presente e o futuro, além de extensões imaginárias da nossa experiência. É possível aprender com ela?


A linguagem do tempo na sala de aula: um breve addendum

Colega professor, o filme “A chegada” segue a linha do que se pretende neste site: sugerir filmes cujas temáticas não sejam tradicionalmente enquadradas como históricas. Muitas vezes esses são os melhores filmes com os quais trabalhar, pois assim afastamos a ideia consagrada pelo senso comum de que o filme nas aulas de História serve a ilustração do conteúdo, e não para se produzir uma reflexão histórica. Ora, pensar a maneira como ordenamos o tempo, como dialogamos com o passado e com o futuro, é uma habilidade fundamental para a aprendizagem do conhecimento histórico. A competência de pensar historicamente pressupõe saber lidar com a experiência do tempo. E nesse sentido, o filme “A chegada” pode ser um meio de se proporcionar isso.

Como vocês devem ter percebido, e talvez alguns até já tenham visto o filme, trata-se de uma obra de ficção. No entanto, uma fantasia que está pautada em factualidades, e embora especule sobre eventos futuros, apoia-se em elementos factíveis, e até mesmo na experiência histórica. Assim como as ações humanas sejam em geral vistas como decorrência do passado, como uma cadeia de sucessividade linear e uniforme, são também formas de anteciparmos o futuro. Em linhas gerais, a partir da observação da realidade, que é constituída historicamente, fabricamos nosso modo de vida, também em função daquilo que esperamos que aconteça. No entanto, tudo leva a crer que estamos vivendo um tempo em que não conseguimos enxergar muito além no horizonte. Por mais estranho que pareça, isso faz falta porque também precisamos aprender com o futuro. Como assim?

Como professores de história, sabemos o quanto é danosa a perda da memória social, uma condenação ao limbo do esquecimento, e infelizmente, até mesmo o mergulho “consciente” na celebrização de tal apagamento de nossa experiência. Sim, sabemos o quão é importante nossas referências no passado, a fonte de onde podemos construir, além de outras coisas, nosso senso de identidade. Mas, reforço, aprendemos também com o futuro. Se não com o futuro exatamente, já que ele não existe, mas da nossa competência em enxergá-lo. Se muitas vezes perdemos nossa empatia com o passado, talvez igualmente prejudicial é perder a empatia com aqueles que continuarão a nossa existência no tempo futuro.

Este filme pode ser um estímulo para que, em sala de aula, se possa construir a percepção que aprender com as experiências do passado não está desassociado de compreendermos o horizonte de expectativas a nossa frente. Imaginar o que faríamos, como sobreviveríamos em uma possível situação adversa no futuro, orienta-nos a pensar em nossa experiência como salvaguarda e ponto de partida para a solução. Mas, evidentemente, é necessário sempre estimular o protagonismo dos alunos. E para isso, uma série de perguntas podem direcionar essas percepções e visões múltiplas sobre o tempo.

Pode ser eficiente questionar as reações diante da chegada dos aliens. O que os países fizeram? Como e porque começaram a pensar divergentemente? O que explica, de acordo com o tempo da produção do filme, que China e Rússia tenham sido as nações que queriam optar por uma solução militar? Esse debate, portanto, envolve também aspectos da produção do filme, o que é muito importante porque estimula o aluno a pensar sobre as intenções na produção das narrativas. Observem que no texto eu lanço várias reflexões que podemos fazer, e que procuram encadear um raciocínio que articule passado-presente-futuro. O professor pode elaborar outras perguntas baseado nessas pontuações que fiz, entretanto poderá até mesmo enxergar outras possibilidades que não me ocorreram.

A chegada


Dados do filme:


• Título: A Chegada
• Título original: Arrival
• Direção: Dennis Villeneuve
• Roteiro: Eric Heisserer (baseado no conto “A história da sua vida”, do escritor Ted Chiang).
• Ano de lançamento nos cinemas: 2016.
• País de produção: Estados Unidos
• Duração: 116 minutos.
• Elenco principal: Amy Adams (Dra. Louise Banks), Jeremy Renner (Ian Donnelly), Forest Whitaker (Coronel Weber) e Michael Stulhbarg (agente Halpern).

Sinopse: Doze naves alienígenas pousam na terra. Em cada uma dessas regiões são montadas equipes que tentam entrar em contato com a tripulação, formada por criaturas que se expressam através de sinais gráficos circulares. Tendo como principal objetivo descobrir a intenção dos visitantes, os seres humanos ao mesmo tempo que precisam compartilhar os conhecimentos adquiridos entre si, e fazer avançar suas investigações, encontram dificuldades de manter um diálogo devido a seus históricos de rivalidades e um receio de estarem sendo manipulados pelos aliens. Enquanto a situação se agrava, a linguista Louise Banks parece começar a desvendar a estranha linguagem, e a partir daí, descobrir a verdadeira intenção da presença das estranhas criaturas.

Referência para citação: A chegada. Direção: Dennis Villeneuve. Produtores: Aaron Ryder, Dan Lavine, David Linde, Eric Heisserer e Shawn Levy. Elenco: Amy Adams, Jeremy Renner, Forest Whitaker, entre outros. Roteiro: Eric Heisserer (Baseado no conto de Ted Chiang “História de minha vida”). Título Original: Arrival. Estados Unidos. Ano de lançamento: 2016. Cor. Duração: 116 min.


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