“Oh, Maria José. Maria José, tu não tá me ouvindo chamar não, Maria? Tu não sabe que aqui não é lugar pra tu ficar agora? Em vez de ficar perdendo tempo, desenhando nome, vá lá pra fora arranjar o que fazer. Vá.” Quando ouve essas palavras, a pequena protagonista do filme está tentando aprender a escrever o seu nome em um caderno. Esse é o instante em que ela será arremessada no destino que, como se conhecerá depois, foi o de sua mãe e de sua avó. Para Maria José, o futuro ficará cada vez mais próximo do presente, assim como este carregará o peso do passado, confundindo-se com ele.
Circunscrita no que parece ser o sertão do nordeste brasileiro, a personagem não vê apenas a sua expectativa de futuro diminuída com o passar dos anos, sua vida é limitada simbolicamente por uma cerca que rodeia a sua casa, e no ínfimo território onde se desenvolve a sua existência, Maria repete a cada dia as mesmas tarefas, como antes fizeram as mulheres que a antecederam na família. Desta forma, espaço e tempo são cenários, e também personagens desse enredo, dessa vida maria. É a permanência desse lugar apresador, que permite a percepção das pequenas mudanças na vida de Maria José, sendo elas que, com a passagem dos anos, a tornarão igual a Maria Aparecida, Maria de Fátima, Maria das Dores...
A aparência do céu sem nuvens, que quase se dissolve ao chão em direção as estacas que limitam o lugar de Maria José é pano de fundo das transformações que se processam em sua pele, que aos poucos se tornará rachada e seca como o chão que ela pisa. Essa quase eternidade é interrompida apenas pela rápida passagem do tempo da chuva. Mas para Maria pouco mudará. Os filhos homens irão trabalhar na roça como o marido, viverão além dos limites da cerca, enquanto sua rotina seguirá. O quanto disso tudo será capaz a menina de antever? Pensará Maria em um mundo além desses muros? Quando criança poderá imaginar a vida fora dali. Como seria? Ao crescer, verá que até onde seus olhos avistam, o mundo ainda será cercado pelos limites de seu passado.
“Tem o pátio pra varrer, tem que levar água pro bicho. Vai menina, vê se tu me ajuda, Maria José”. Essas são as palavras que encerram o único diálogo entre mãe e filha e é o último momento em que Maria José irá desenhar o seu nome. Apenas uma folha e não mais que isso, e é fechado para mais uma geração de Marias, o portal dimensional que magicamente estendia a vida para além daquelas cercas. A menina corre para o quintal, como ordenara a mãe, começa a puxar a água, e num dos enquadramentos mais impactantes do filme, as duas Marias trocam um olhar que transcende o tempo, que é transmutado em experiência e expectativa. Maria vê a si mesma. A imagem é passado, presente e futuro. Maria forte e amargurada. O que se seguirá a esse instante é uma sequência de alteridades e permanências, duas faces da mesma moeda, que sela o destino da vida Maria.
A moça já formada, adulta, cumpre mais um rito de passagem ao casar-se com Antônio. Ato contínuo, uma leva de filhos indica que Maria já está mais próxima de consolidar o retorno ao início da narrativa, em que também passará a Maria de Lourdes, sua filha mais jovem, ela mesma no passado-presente-futuro, a sina de viver no espaço-tempo mesmo. À propósito, é curioso que a palavra tempo seja confundida com características do clima. O ciclo verão-inverno, quente-frio são a presença de efetiva mudança, além da fatalidade do envelhecimento e da morte, e está associado ao próprio sentido mimético da existência. No mais, a vida maria é marcada por encher o balde de água, tarefa que é mostrada várias vezes para ressaltar os elementos de repetição e continuidade. Nesse sentido, o número de filhos de Maria acentua tal significado, pois sete era o número que simbolizava a plenitude cíclica para os hebreus. O sentido de completude indica que Maria já cumpriu o seu papel.
O filme pode ser entendido como uma metáfora eficiente sobre a representação da convivência de diversos tempos em uma narrativa. A vida de Maria é presente (em suas ações), passado (na tradição que legou sua vida maria) e futuro (na maneira como imporá o mesmo destino à filha). É cíclico na repetição do cotidiano e na reprodução de uma existência sempre igual a de sua mãe; embora seja linear por causa de seu inevitável envelhecimento, casamento, crescimento dos filhos. No entanto, para além dessas constatações, é fundamental perceber como cada pequena alteração na vida de Maria, agencia uma nova forma de relacionar o que o historiador alemão Reinhart Koselleck chama de espaço de experiência e horizonte de expectativa. Do momento em que se separa do caderno de caligrafia ao velório da mãe, Maria José irá gradualmente afastar-se do seu futuro (enquanto expectativa).
Porém, a vida de Maria não pode ser sintetizada simplesmente pelo seu conjunto, mas na maneira como em cada contexto, sua relação com o passado e o futuro vai sendo ressignificada. Se aceitarmos que a ideia de progresso é o que une experiência (passado) e expectativa (futuro), como defende Koselleck, o paradigma progresso/modernidade é nutrido pela expansão do horizonte de expectativas, em detrimento do espaço de experiência. Sendo assim, o equilíbrio simétrico entre os dois, suprime a ideia de progresso. Por isso, a vida de Maria José não é uma vida de progresso. Não há perspectiva de estudar, consumir ou viajar. Ela não progride também porque não vive o não contemporâneo no contemporâneo. Não vive uma experiência com base em uma expectativa, não antecipa o futuro no trabalho para realizá-lo. Se não progridem, as Marias são, assim como seu modo de vida, atrasadas. E se não há grandes expectativas em relação ao futuro, há maior tendência a ter uma visão imutável das coisas, uma consciência tradicional.
Entretanto, por mais repetitiva que pareça ser a existência de Maria José, curiosamente é essa repetição que deixa a certeza dela não viver apenas o presente. Pois a perspectiva circular de sua existência a mergulha no tríplice mundo do passado-presente-futuro. Dessa forma, sua vida é um palíndromo temporal, cuja trajetória pode ser lida em qualquer direção, produzindo o mesmo significado. O que ficará evidente quando o expectador ficar sabendo quantas vidas estão a realimentar esse universo. Na última ação a que somos convidados a acompanhar, o vento dobra as páginas do caderno que Maria de Lourdes deixa sobre a janela. Como se embarcados numa máquina do tempo, ficamos sabendo que antes dela, todas as outras marias já estiveram aqui neste lugar. O que vemos é o passado ou o futuro? Pois não há ausência de outros tempos em sua vida, mas o que aproxima Maria de um presente contínuo é a extrema proximidade de suas ações com todos eles.
Por esse ângulo, reconhecendo a multiplicidade temporal, observa-se, embora muito limitada também, uma interação espacial. A presença do caderno sugere a existência de uma escola no entorno do lugar de Maria. E é essa distância que separa a infante de uma sala de aula, ora aproximando, ora afastando-a do seu horizonte de expectativa, orientando sua maneira de lidar com o tempo, que parece passar cada vez mais lentamente à medida que a escola vai deixando de ser uma possibilidade, ficando a sua formação cultural verticalizada, passando de mãe para filha. E na fala da mãe Maria Aparecida, estará tanto a fala de Maria José quanto de Maria de Lourdes. No próprio caderno de caligrafia das marias, ficará demonstrada essa limitação, posto que, ao lado dos sobrenomes que as diferenciam, aparecem desenhos das únicas coisas que conhecem: a árvore, a casa, o sol e a família.
Da restrição espacial evidenciada desde as primeiras imagens do filme, vai-se aos poucos percebendo a redução do tempo, na medida em que ele é reordenado pelas transformações na vida da personagem. E o efeito de compressão do tempo é reforçado no filme porque se trata de um plano-sequência. No entanto, subverte-se a lógica de equiparar o tempo da narrativa ao tempo da história. Da infância a velhice, a câmera percorre a vida maria, acompanha-a, sem cortes. Mostra sua mudança diante da imagem fixa do cenário que a rodeia. Não há flashbacks, elipses e a ação é ininterrupta. Uma vida que passa em nove minutos, um pequeno conjunto de ações que traduzem toda uma existência. Portanto, esse tempo/mundo é a eternidade da vida de Maria.
O curta-metragem Vida Maria foi realizado no Ceará, sendo assim, produz uma reflexão sobre o lugar de si. Dessa forma, espera-se uma clara empatia com alunos que morarem na região nordeste, em especial, os que habitam a zona rural. Nesse caso, não só pelas situações mostradas no enredo, mas acredito que na maneira como os personagens parecem encarar os seus destinos, mergulhados numa dura realidade que transparece imutabilidade. O cinema possui essa dimensão de permitir ver-se. Porém, do mesmo modo que ele representa um imaginário cultural, instiga a crítica desse modo de vida, a partir da ideia de que aquilo que se mostra, no caso de Vida Maria, é um passado-presente. Entretanto, mesmo para aqueles alunos que vivem em outras regiões, é um interessante exercício de alteridade.
Observar as mudanças e permanências, relacionando experiência e expectativa, são atitudes e ferramentas que mobilizam o ato de pensar historicamente. Sendo assim, estimular a percepção desses elementos em uma narrativa é indispensável como forma de desenvolver essa competência. Reconhecer nela a representação de um sentido que se produz justamente a partir da atitude de pensar a existência humana para além das ações do presente. No entanto, essas ações são orientadas pela maneira como os alunos reconhecem a presença da experiência (passado) e expectativa (futuro) em suas vidas.
Se observarmos o filme “Vida Maria”, constataremos claramente tratar de uma história de ficção, pois aqueles personagens não existiram tais como exposto no filme, não podendo ser alvo de uma reconstituição. No entanto, a história apresenta uma síntese de várias pessoas e lugares que viveram aquelas vidas, aquelas experiências. Os nove minutos de Vida Maria são suficientes para que reconheçamos que se trata de uma realidade dramaticamente possível. Muitas Marias, muitos Antônios viveram e vivem aquelas experiências. O filme conta uma história factível, verificável em seu significado.
A maneira como “Vida Maria” modula o tempo, permite não só que o ouvinte/expectador do filme entenda o tempo interno da narrativa, como relacione a intriga a tempos que estão fora do enredo, embora constituintes da sua diegese. Além de pensar na relação espaço-temporal, permite considerar a presença do narrado em suas vidas, no que se refere especialmente as continuidades e descontinuidades.
Entre os alunos é possível ouvir comentários no sentido de que não deveríamos estudar história porque não devemos nos prender ao passado. Qual o sentido de saber algo que nada teria mais a ver com o presente? Para outros, não há porque pensarmos sobre o sentido das experiências históricas, porque as coisas são e serão como sempre foram. Ora, duas formas completamente distintas de lidar com a experiência temporal. Além disso, como usamos a consciência histórica para narrarmos histórias, utilizamos também essa consciência para compreendermos a história. Se um aluno acha que todo o conteúdo da disciplina está relacionado ao passado, a coisas que não existem mais, esse saber se apresentará como sendo desnecessário. Evidentemente, haverá um fracasso na aprendizagem histórica deles, a não ser que consideremos a memorização de dados para preenchimento de avaliações, uma forma de aprendizagem histórica. Os chamados conteúdos substantivos são suportes de aprendizagem, não terão nenhum efeito sobre esse aluno se o seu uso não se associar a um raciocínio que interfira na mudança de consciência.
Uma reflexão histórica se produz efetivamente quando o aluno é capaz de relacionar passado, presente e futuro e extrair daí uma orientação. Ao se estudar o passado, por exemplo, compreender esse passado, ao mesmo tempo que se compreende os meios pelos quais nós produzimos um conhecimento sobre ele. É por isso que a ação pedagógica de estimular o aluno a enxergar essa relação é uma forma de instigar o raciocínio histórico. Porém, ao compararmos passado e presente, por exemplo, não estamos apenas tentando compreender o passado, mas também o presente, pois ao verificarmos as alteridades entre eles, somos lembrados também que o tempo presente está submetido a mudanças e que o futuro sobre ele lançará seu olhar. Por este motivo, a percepção dessas alteridades e permanências é tão importante para o desenvolvimento dessa consciência histórica, e por consequência, do pensar historicamente.
Entretanto, é preciso muito cuidado quando trabalhamos a apropriação das noções de tempo nas aulas de História, principalmente diante de um suporte que pode envolver uma forte carga de subjetividades como é o caso do filme “Vida Maria”. Pois, como foi ressaltado acima, há várias formas de perceber o tempo aqui. Em sua circularidade e linearidade, na permanência de características do passado que acentua a impressão de uma realidade que não muda, na maneira como se agencia a percepção das experiências e expectativas na personagem. Ou seja, compreender de que maneira as categorias temporais de alteridade e permanência são operadas para que seja então, produzida uma narrativa que represente a história. Nesse caso, da vida de Maria José.
O desafio, evidentemente, é criar uma abordagem que permita aos alunos entenderem essa dinâmica, sem aceitá-la como algo factual e uniforme. Ora, por que a vida das Marias parecia ser sempre igual? O que era determinante nisso? Era culpa de suas mães, que reproduziam aqui o que foi a elas imposto? Essas perguntas são fundamentais para verificar se a consciência histórica dos alunos opera uma lógica meramente tradicional e exemplarista.
O aluno pode ser também desafiado a tentar imaginar em que época poderia se passar a história do filme, já que vários elementos do enredo sugerem impressões nesse sentido. Por exemplo, a presença de uma escola nos arredores da casa de Maria. Ora, se várias marias tiveram o contato com as primeiras letras, tinham um caderno de caligrafia, provavelmente começaram a frequentar a escola. Há também a presença de uma estátua de Padre Cícero na sala da casa, próximo ao caixão de Maria Aparecida, o que ao menos delimita algumas hipóteses temporais. No entanto, podem haver grandes divergências em relação à quando a história teria se passado. Alguns podem dizer que se trata de um tempo muito anterior ao nosso, outros acharem que essa é uma realidade ainda presente, o que permite ao professor trabalhar as noções de alteridade e permanência.
A definição de uma marcação específica de tempo para a história pode afetar inclusive a opinião dos alunos sobre a atitude das mães em relação as filhas, e pode ser um passo importante para se avançar numa compreensão do passado que leve em conta o contexto das ações e dos personagens. Esse é o ponto chave, proporcionar ao aluno, a ideia de que a história é constituída e narrada a partir da compreensão do tempo.
Evidentemente, tudo isso só vai fazer sentido se entendermos que não se estuda história para se aprender os conteúdos. Eles são meios, suportes para que se desenvolva a aprendizagem. Dessa forma, essa narrativa “ficcional” que nos inteira da vida de Maria José, que espelha tantas outras pessoas no Brasil de ontem e de hoje, é também um instrumento para que, em sala de aula, possamos conduzir os alunos a uma reflexão histórica.