Vida Maria
janeiro 7, 2020
O preço do amanhã
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O presente pelo espelho retrovisor


A primeira marcação temporal do filme “Quanto vale ou é por quilo?” nos é apresentada já em sua abertura. Vemos um pequeno grupo de pessoas; algumas à cavalo, outras à pé, trata-se de uma missão ocorrida no dia 13 de outubro de 1799. Capitães do mato aprisionam escravos que viviam em fazendas, nas proximidades do Rio de Janeiro. Acompanhamos, ato contínuo, a personagem Joana Maria da Conceição, ex-escrava, alegar que um desses capturados estava legalmente em sua posse, o que poderia se provar através de documentos. Há uma rápida discussão e o resultado da disputa é a condenação dela por perturbação da ordem. Ao final dessa sequência, ficamos sabendo de duas coisas: tal episódio é uma dramatização de fato histórico cujos registros oficiais estão guardados no Arquivo Nacional, e que, mesmo entre donos de escravos, também havia desigualdade.
 

Embarcamos num salto temporal que nos leva até os dias de hoje, quando é apresentado o hábito de prestar solidariedade aos mais carentes como um ideal de vida, que encontra amparo em um setor da economia organizado em torno de agências de publicidade e ONGs, cujo papel social é levar socorro aos famintos e desabrigados. Numa dessas entidades, Mônica trabalha para Noêmia, uma das mulheres abastadas que o filme retrata como adeptas da “dieta da consciência”, ou de uma forma mais explícita, pessoas que ocupam sua vida com o trabalho em prol de “ajudar” os outros. Sendo assim, Noêmia, diante da dificuldade de Mônica em custear a festa de casamento da sobrinha, oferece-lhe a oportunidade da mesma trabalhar um ano para ela, em troca de um empréstimo. O que é prontamente aceito por Mônica, que, emocionada, agradece a “bondade” de Noêmia.

Como se estivesse o espectador em um loop, numa espécie de montanha-russa do tempo, volta-se novamente ao século XVIII, quando vamos conhecer a história da negociante de escravos Maria Antônia, e da escrava Lucrécia. Esta última, já com mais de cinquenta anos, tenta penosamente juntar o montante exigido pelo seu dono para comprar a tão sonhada carta de alforria. Confessa a Maria Antônia sua dificuldade, e recebe dela a proposta de sua compra. Em troca, Lucrécia trabalharia para Maria Antônia por um período necessário para compensar o investimento, e ainda, gerar lucro para a amiga/negociante. Acordo concretizado, após três anos, já muito debilitada de tanto ocupar-se em horas-extras e trabalhos para outras pessoas, Lucrécia paga sua dívida. Conclusão: “o lucro e a liberdade, enfim, se tornam realidade.”
 

Esse movimento de idas e vindas no tempo, será a tônica do enredo. Para o público mais atendo, fica evidente que o objetivo em se alternar passado e presente é estimular a percepção das alteridades e permanências que marcam a sociedade brasileira. No entanto, o roteiro procura pontuar algumas situações do início deste século para não acentuar demasiadamente a impressão de simples continuidade. Para isso, destaca aspectos singulares, embora fique muito claro que existe uma lógica entranhada no mecanismo social, que por sua vez, reforça a persistência da desigualdade. Porém, busca retratar a “modernização” do usufruto dessa desigualdade, expondo a maneira como a mesma é negociada em tempos de consumo de massa.

Um dos artifícios usados no filme para que o espectador mergulhe nessa gangorra temporal, além das situações que procuram vincular narrativamente passado e presente, é o uso dos mesmos atores, interpretando as situações que se espelham. Um exemplo é o caso citado acima, em que Noêmia e Maria Antônia são interpretadas pela atriz Ana Lúcia Torre. Esse recurso será usado também com dois outros personagens, Candinho (o futuro “genro” de Mônica) e a líder comunitária Arminda. Ambos personificarão, respectivamente, o capitão-do-mato e a escrava fugida que será recapturada.

O termo capitão-do-mato é por si só, uma ferramenta de aproximação temporal e exemplifica aquilo que chamamos de usos do passado. O termo é muitas vezes evocado para se referir a situações em que alguém é acusado de prejudicar, ao invés de socorrer quem pertença ao mesmo grupo ou segmento da sociedade. Nesse caso, temos o que se chama de anacronismo, que é atribuição de um valor ou conceito fora de seu contexto original. Embora isso possa ser quase sempre algo bastante problemático, pode ser lido como uma forma das pessoas tentarem estabelecer um vínculo narrativo entre tempos diferentes. Incorrendo-se em erro quando não se considera devidamente as especificidades de cada tempo-espaço.

No filme, esse arcos narrativos entre passado e presente são constantemente projetados na tela pelo uso das dramatizações que retratam a escravidão nos séculos XVIII e XIX, correspondendo, pela construção da intriga, com situações que aparentem sua recorrência no tempo atual, embora atualizados pelo processo de modernização dessas permanências. E são vários os elementos que compõem a mise-en-scène, cujo intuito é o de pontuar as permanências e alteridades entre o período escravocrata e a contemporaneidade, como a existência das senzalas modernas, representadas pelas favelas, embora hoje formada de pessoas de “todas as cores”, uma espécie de democratização do processo de precariedade. O roteiro procura ressaltar também a problemática que envolve os sem-teto, como sendo o resultado de um processo de segregação que começou pela não integração da massa de ex-escravos, apesar de não ser mencionado diretamente no filme. Porém, as noções de sucessividade e causalidade podem ser subentendidas a partir do roteiro.

No entanto, há uma menção a certa idealização da vida nessas comunidades. Uma imagem positiva que se pretende construir, em substituição a políticas efetivas de reparação, pois a pobreza não só vende, ela justifica e permite a salvação daqueles de quem dela precisam para lucrar, ou mesmo “elevar a sua alma”. Esse é outro ponto de transcendência sugerido no enredo. Durante a Idade Média, era comum a prática de caridade está associada a elevação da alma, e a miséria era vista como uma forma de proporcionar isso. Portanto, eliminar as condições de diminuição da desigualdade causaria uma desordem na engrenagem social. Apesar disso, segundo o filme procura demonstrar, essa realidade é atualizada pelo discurso da positividade e do otimismo. O que também contribui para ressaltar que o presente não é igual ao passado.

O personagem Dido, vívido pelo ator Lázaro Ramos, que aparece inicialmente preso, faz a seguinte reflexão, comparando sua situação na cadeia ao traslado de cativos para o Brasil no período colonial: “Esse é o nosso navio negreiro. Dizem que a viagem era bem assim. Só que lá só durava dois meses, e o principal: lá ia terminar em algum lugar. Na escravidão a gente era tudo máquina, tudo máquina. Eles pagavam combustível e manutenção para que a gente tivesse saúde e pudesse trabalhar de graça para eles. Agora não, agora é diferente. Agora a gente é escravo sem dono. Cada um custa setecentos paus pra o estado por mês. Isso é mais do que três salários mínimos. Isso diz alguma coisa sobre esse país. O que vale é ter liberdade pra consumir. Essa é a verdadeira funcionalidade da democracia.”

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Esta fala está eivada de simplificações. No entanto, reflete uma maneira das pessoas agenciarem o passado em prol de pretensas atitudes compensatórias, como o filme irá depois demonstrar. Porém, é proveitoso observar que essa é uma maneira comum de produzir uma relação entre passado, presente e futuro: a construção de uma genealogia cuja função é explicar o presente pelo passado. Na fala de Dido não há provavelmente nenhum erro factual. Porém, relacionar a escravidão ao fato dele está preso é o ponto que o roteiro toma como eixo para provocar o espectador a raciocinar historicamente.

Observa-se na imagem cujo pano de fundo é a narração de Dido, uma cela superlotada, com alguns dos presos agarrados à grade para buscar uma melhor forma de respirar. Ao ouvirmos o personagem dizer que o navio negreiro era assim, apresenta-se um contraste com a imagem, pois homens brancos também são mostrados dentro da cela. O que demonstra que entre passado e presente apresentam-se algumas singularidades, por mais que o ponto de vista construído por Dido seja o de acentuar a permanência.

 

Compreender o passado não é naturalizá-lo. A ideia do filme é procurar produzir uma narrativa que dê cabo de nos fazer pensar as características de uma sociedade não como algo preso a um espaço, mas que ecoa no tempo. Portanto, toda realidade possui um lógica espaço-temporal. Podemos visualizar fisicamente um problema em um dado contexto espacial, como a pobreza entre moradores de uma favela. Porém, o tempo é uma abstração. Essa pobreza e segregação que vemos nas comunidades da periferia carregam um tempo, e uma temporalidade. Ali mesmo estão passado, presente e futuro, na forma como essas perspectivas temporais orientam as atitudes cotidianas. Sendo assim, pensar historicamente é ser capaz de apreender essa ordem, e operar narrativamente sobre ela. É o que nos propõe o enredo do filme do diretor Sergio Bianchi.

Retomo a frase emblemática ao final da cena em que Maria Antônia “ajuda” a sua escrava Lucrécia a conseguir comprar a alforria: “o lucro e a liberdade enfim se tornam realidade.” A prática de ações de suposta solidariedade com a finalidade de obter ganhos individuais pode parecer forçada no filme, mas é uma realidade comum. Muitas investigações do poder público dão cabo de demonstrar que várias instituições mantidas por pessoas ricas, empresários, jogadores de futebol, entre outros, são formas de driblar o pagamento do Imposto do Renda, com superfaturamento dos valores aplicados nessas instituições. O que nos faz perguntar o que seria feito então por essas pessoas, sob a orientação dos seus eficientes e criativos contadores, caso não existissem crianças carentes para serem assistidas.

Para mostrar como essas situações são complexas e difíceis de julgar, há uma cena em que está sendo produzido um comercial, onde imagens de crianças negras serão utilizadas para sensibilizar as pessoas a doarem para os trabalhos de caridade de uma igreja. Um dos personagens, incomodado com a presença de poucas crianças que ele realmente considere negras, diz que um deles (cuja coloração da pele era mais escura) tinha até pedigree, o que gerou a revolta de uma das funcionárias da Stiner (agência de publicidade), que como negra, sentiu-se ultrajada e reclamou do abuso. Entretanto, ela não via nenhum problema na exploração da imagem das crianças negras para obter lucro para sua empresa. Mais um exemplo de como pensar apenas em sua conveniência é uma característica atemporal que o filme quer abordar. Inclusive, no roteiro comentado da obra, os autores explicam que o nome da empresa é uma alusão ao anarquista do século XIX, Max Stirner, que defendia ser uma solução possível para os problemas sociais, reconhecer o egoísmo inerente à humanidade. No livro “O ego e o que a ele pertence” propôs a criação de associações de egoístas.

 

Se observarmos o exemplo acima, é possível traçarmos um paralelo entre o negócio do escravo e o negócio da pobreza e da exclusão. Um dos capítulos do filme é chamado de “denúncia como negócio”, numa crítica a pessoas que sobrevivem economicamente sob o manto de uma causa, de uma militância que se vale, não de uma transformação efetiva, mas da afirmação de uma diferença que gera um mercado a ser explorado, ou seja, um negócio, que atende a livre iniciativa e a prosperidade de projetos de realização pessoal, como por exemplo, no universo da política partidária. Para essas pessoas, ser negro é um negócio, e a denúncia é um instrumento de perpetuação desse negócio. No entanto, o filme não nega a histórica segregação racial brasileira.

A mise-en-scène procura ressaltar essa visão em várias passagens. Vemos, por exemplo, no escritório da empresa que treina pessoas para lidar com a captação de recursos para ajudar outras pessoas, computadores muito mais modernos do que aqueles que foram dados as crianças nas favelas com o dinheiro arrecadado nas doações. Ou seja, a desigualdade é uma fonte de geração de riqueza e lucro, como era a escravidão no século XIX. Naquela época, o que ajudava a manter o sistema escravocrata era o fato de não se aceitar o estatuto de igualdade entre os seres humanos. No filme, vemos a montagem de estratégias de marketing para otimizar a “solidariedade”, o treinamento do pessoal, as demonstrações de “altruísmo” dos voluntários.

Porém, em nenhum momento essas pessoas são vistas discutindo a causa da desigualdade, e como efetivamente diminuir esse problema. Há uma cena que mostra um grupo de empresários conversando sobre como usufruir dessa situação, como, por exemplo, empregar ex-presidiários. Para quem, poder-se-ia pagar menores salários. Nesse universo dos negócios o tempo é sempre o do evento. Como não se combate o problema, muito mais se aproveita dele, uma visão de longo prazo é desprezada, não serve a manutenção desse mecanismo. Portanto, não une lucro e liberdade.

Na cena em que vemos a primeira parte do mais importante arco narrativo/temporal, em que o capitão do mato vai em busca de uma escrava grávida, sua ação é descrita assim: “pegar escravos fugidos era um ofício da época. Não era um ofício nobre, mas para ajudar a manter a lei e a propriedade, trazia uma nobreza própria. Ninguém se metia em tal trabalho por graça ou estudo. A pobreza, a necessidade de um acréscimo de dinheiro, em alguns casos, o gosto de servir ao poder, dava impulso aos homens que se sentiam bastante fortes para tentar pôr ordem a desordem. Os caçadores eram serviços terceirizados, trabalhadores autônomos, que tinham glória nisso. O ordenado variava conforme a idade, habilidade ou força física da presa, pois se tratava de um valioso investimento do cliente, e o melhor, a recompensa era paga no ato da entrega.”

O que se seguirá depois, é que Candinho irá transformar-se em um pistoleiro de aluguel, e encarnará o capitão-do-mato que dará cabo da vida de Arminda, fechando o arco e aparentemente, mas só aparentemente, igualando passado e presente. Se observarmos a fraseologia acima, que mistura linguagem coorporativa, e um certo pragmatismo, justifica os meios pelos fins. Não iguala o capitão do mato ao pistoleiro de aluguel, mas nos força a enxergar certas similaridades entre os dois tempos retratados no filme, e a tentar compreender as circunstâncias que levam as pessoas a determinadas atitudes.

Outra temporalidade presente no filme “Quanto vale ou é por quilo?” é o fato dele ser inspirado no conto de Machado de Assis, “Pai contra mãe”, publicado em 1906. Aliás, o filme usa vários trechos da obra em sua narração em off, como por exemplo, parte da citação acima. Quando o autor escreveu o texto original, a escravidão no Brasil já havia sido extinta. No entanto, é irônico, no contexto do jogo de comparações que a narrativa do filme propõe, que o conto comece afirmando: “a escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais”. Machado segue a narrativa com uma descrição dos instrumentos de tortura usados pelos escravos (que o filme, aliás, exibe), ressaltando seus práticas desumanas, mas há de se perguntar se após quase duas décadas do fim do escravismo reconhecido legalmente, o “bruxo do Cosme Velho” não estivesse a observar certas permanências naquele contexto do início da república.
 

Seguindo o rastro do texto do pai do realismo brasileiro, o filme elabora uma outra narrativa. Não dá pra dizer que é dele uma simples ampliação. Todavia, atualiza uma reflexão a partir da incorporação do seu próprio tempo, do mesmo modo que afirma a permanência de alguns caracteres do passado, procurando no mundo atual, elementos que representem a circularidade como paradigma da ordem temporal.

No passado, o capitão do mato persegue a escrava fugida (grávida) porque precisa obter recursos para sustentar sua família. E Candinho? Pressionado pela “sogra” a ajudar a pagar as despesas do casamento, é ferido em sua moral pela esposa (grávida), que inveja as mulheres bonitas e elegantes que vê em revistas de celebridades, alegando que elas tiveram sorte em casar-se com homens ricos que podem lhes fornecer o que querem, e assim, podem se manter sempre atraentes. Na abordagem proposta pelo roteiro do filme, há um escravismo moderno que orienta as atitudes: o consumismo. Candinho aceita fazer um serviço como pistoleiro. Ganha dinheiro, e passa ser melhor tratado pela sogra e admirado pela esposa.

Porém, Candinho não é o único personagem do filme a justificar, ou sentir-se justificado pelas pressões sociais. Dico, aquele que compara a condição das prisões aos navios negreiros, considera justo que as pessoas mais abastadas passem por experiências traumáticas para sentirem o que outros passam ou passaram. O que seria em sua visão, mais justo. Ao sair da prisão, tendo pago para que isso acontecesse, ele planeja o sequestro do diretor da Stiner, e produz a seguinte reflexão: “duzentos e cinquenta mil dólares. Sequestro é um negócio moderno. Precisa de violência como propaganda para estimular a negociação. Não é isso que mais importa hoje em dia? Business, Marketing, livre-iniciativa. Sequestro não é só captação de recursos, é também redistribuição de renda.” Portanto, assim como a escravidão foi um dia, o sequestro também é um negócio.

Vejamos que outra forma de abordar a questão da temporalidade nos filmes é buscando observar como ele dialoga com o tempo de sua produção. Pois, esse elemento do filme, o plano de Dico de pagar (corrupção, uso do sistema) para sair da prisão, e sequestrar o diretor da agência de publicidade, dialoga com o Brasil do começo dos anos 2000. O país viveu uma onda assustadora de sequestros naquele momento, passando de mais de 100 sequestros por ano. Geralmente envolvendo extrema violência, com partes do corpo das vítimas sendo enviadas à família para apressar o pagamento do resgate, como vemos no filme.
 

Essas situações podem nos levar a reflexões sobre o sentido histórico das políticas de reparações como forma de forçar o presente a dialogar com o passado. Evidentemente, à despeito do que é mostrado na obra, cada uma dessas políticas tem sua viabilidade própria, assim como o caráter de sua reinvindicação, não cabendo aqui julgamentos nesse sentido. O que me interessa discutir é a maneira como socialmente produzimos discursos que nos aproximam, muitas vezes de forma casuística, com o passado, porém, sem de fato procurar compreendê-lo em sua dimensão própria.

O diretor Sergio Bianchi faz uma provocação visceral, se formos realmente atentos e nos lembrarmos daquilo que é dito lá no começo da história, pois o fato de Joana Maria da Conceição possuir escravos é justificado com a ideia de que ela agia conforme o sistema. Nesse caso, o que Dico faz é agir conforme o sistema? Na época em que Joana Maria tinha escravos, não era proibido os ter, mesmo ela antes tendo sido vítima da escravidão. Mas hoje sequestrar e torturar é crime, mesmo que os sequestradores sintam-se explorados pelo sistema. Ou estaria Dico reparando violências cometidas contra seus ascendentes escravos? Não é possível justificar isso moralmente, mas é preciso reconhecer que essa é uma lógica que opera muitas vezes as narrativas que buscam aproximar passado e presente.

Questões como essas são delicadas, e o filme propõe múltiplas interpretações da realidade. Porém, independentemente da forma como nos posicionemos nesse embate, assim como no filme, faz-se uso do passado para se construir narrativas que tentam dar cabo de entender o presente. Esse discurso que legitima atitudes e ações em função de características do passado, que permanecem, é um dos elementos mais delicados no ato de pensarmos historicamente, pois a própria ideia de presente está vinculada a sua relação com outros tempos. Principalmente, em casos como o da sociedade brasileira, que apresenta alguns problemas que parecem estar congelados no tempo.

Quando vi o filme pela primeira vez, ao perceber que Arlinda tinha posse de documentos que comprovam o superfaturamento da empresa de captação de recursos para atividades filantrópicas, imediatamente pensei que ela seria morta. Por quê? Fui levado a pensar dessa maneira pela narrativa do filme, ou por minha visão de mundo, pautada na leitura que faço do presente em que vivo? Bem, no filme, vemos Candinho aparecer como capitão do mato para, em nome da sua família, do futuro do seu filho recém-nascido, matar Arlinda. Ouve da esposa que agora sim, ele é seu homem, o homem que ela desejava ter. E rimando com a ação do capitão do mato no passado, ouvimos em off: “com a recompensa pela escrava fugida, o capitão do mato pode agora criar seu filho, alimentá-lo e educá-lo com dignidade e liberdade.”
 

Enfim, ressalto que, como diretor de outros trabalhos polêmicos e viscerais, a exemplo de “Jogo das decapitações” e “Cronicamente inviável”, Sergio Bianchi não teme melindrar as pessoas que se apegam “egoisticamente” a uma ideologia. As idas e vindas no tempo que ele nos propõe em “Quanto vale ou é por quilo?” nos provoca a reagir diante de uma realidade, que, como já salientei, não pode ser enxergada apenas no aqui e agora. Pois, se quisermos enfrentar o desafio de pensar o futuro do Brasil, devemos reconhecer que ele não é para turistas do tempo, que só enxergam o que veem com os próprios olhos.




O tempo passado no presente: “Quanto vale ou é por quilo?” na sala de aula:


Além de todas essas questões que levantei e que podem ser transformadas em ferramentas para potencializar o raciocínio histórico-temporal; em filmes históricos, a representação imagética de outras épocas torna o uso dessas obra em sala de aula um recurso interessante, já que vários adereços produzem uma presença do passado, como as roupas, o dinheiro, práticas jurídicas, o ábaco, as ruas, a cenografia interna dos ambientes; todos remetendo a outro tempo, o que pode ajudar a enfatizar o caráter de alteridade na história. O que, no caso específico desse filme, é um contraponto para as possíveis impressões de continuidade que ele quer enfatizar à depender da significação dada pelo espectador. Já que o filme não é sobre o passado tal com teria sido, ou sobre o presente como constatação da realidade. O que ele produz é uma síntese de possíveis formas de enxergar o país.

Pensando no uso desse filme como ferramenta na aprendizagem histórica, pode-se ressaltar a presença de dramatizações do período da escravidão como fontes para tentarmos compreender o passado. Observando as condições estruturais, o aparelho jurídico, a mentalidade que ajudava a sustentar aquelas relações sociais, que na verdade, guardam muitas diferenças em relação ao mundo em que vivemos. Pois uma reflexão histórica não deveria se pautar apenas em reconhecer o tempo atual como mera continuidade do passado. Pois, há diferenças substanciais entre o Brasil de hoje e a realidade dos séculos XVIII e XIX. No entanto, a grave situação de desigualdade, característica maior do quadro social do país, ainda é bastante pautado pelo discurso que vincula o presente ao passado da escravidão. Sendo assim, ao mesmo tempo que o filme levanta esse debate, também faz uma crítica ao determinismo das relações de exploração como simples consequência de outros tempos.

A cena de abertura, quando é citado que a dona de escravos Joana Maria da Conceição havia sido escrava, e que se aproveitava da situação legal vigente, pressiona-nos a entender o contexto de cada época. Pois, por mais aparentemente semelhantes que as realidades possam ser, é nas diferenças que está a chave para pensarmos historicamente. Em uma conversa com a personagem Arminda, um amigo lhe passa os documentos que comprovam a corrupção da empresa que forneceu computadores superfaturados aos seus alunos. Ele diz a Arminda que: “são as oligarquias, elas se encontram, fazem novas alianças, combinam velhos esquemas. Esse pessoal deita e rola e depois ainda ganha a eleição. Fica tudo sempre nas mesmas mãos. E pra gente, sobra o quê? Esse papel chato de ficar fazendo denúncia”.

Essa frase apresenta uma série de elementos (implícitos e explícitos) que podem fomentar um debate sobre alteridades e permanências na sociedade brasileira. Senão, vejamos: o conceito de oligarquia, como se constituiu e qual o seu significado histórico em diversos contextos? O fato de existir uma eleição, por exemplo, exige arranjos diferentes de um passado em que, por exemplo, a maioria das pessoas sequer votavam. Quando ele diz que fica tudo nas mesmas mãos, é possível discutir de quem sejam essas mãos. Em relação às denúncias, podemos questionar quais são os veículos constituídos historicamente para que as pessoas possam fazê-las. Pode-se refletir aqui sobre o papel da imprensa nos dias de hoje, sobre como ela poder agir positiva ou negativamente nesse sentido. Quem sabe até buscar na imprensa da época, menções a causa abolicionista e investigar possíveis interesses comerciais e industriais em algumas pessoas que defendiam a “liberdade” dos escravos. Será que naquele caso também não poderíamos dizer que “o lucro e a liberdade enfim viraram realidade”?

Porém, caro colega professor, esta, assim como as outras obras do diretor Sergio Bianchi, presta-se a muitas interpretações. E, por mais que o autor, em minha opinião, tenha procurado demostrar que a realidade precisa ser compreendida em sua complexidade, não enxergada apenas por um único prisma ou convicção político-ideológica, como fez em “Cronicamente inviável” ou em “O jogo das decapitações” (volto a mencionar e recomendo enfaticamente), o filme “Quanto vale ou é por quilo?” é muitas vezes usado em sala de aula, palestras ou reuniões de associação política, como um retrato do país que se apresenta como uma mera repetição do seu passado.

Todavia, como estímulo para o raciocínio histórico-temporal dos alunos, que é o nosso foco aqui, seria mais importante que o professor pudesse orientar uma discussão que permitisse aos alunos perceberem que o tempo presente, seja qual for, guarda muito do passado (em suas recorrências e transcendências), porém, nesse jogo de (des)continuidades, é preciso enfatizar que cada tempo produz os seus significados, até mesmo que constantemente ressignificamos o passado, ou seja, agenciamos nossa trajetória a fim de justificar a transformação ou manutenção do mundo em que vivemos.

Portanto, “Quanto vale ou é por quilo?” não é um filme que “fala” da escravidão, e sim da sociedade brasileira. No entanto, enxergando-a no espaço-tempo, onde várias questões, incluindo a escravidão, são discutidas e atualizadas. Ou seja, o filme do diretor Sérgio Bianchi nos fala do passado e do presente. Mas cabe um debate: fala-nos também do futuro? Essa é uma boa pergunta para ser respondida junto com os alunos.

Quanto vale ou é por quilo?

Dados do filme:
• Título: Quanto vale ou é por quilo?
• Direção: Sérgio Bianchi.
• Roteiro: Eduardo Benaim e Sergio Bianchi (baseado no conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis).
• Ano de lançamento nos cinemas: 2005.
• País de produção: Brasil.
• Duração: 110 min.
• Elenco principal: Ana Carbatti (Arminda), Ana Lúcia Torre (Maria Antônia/Noêmia), Silvio Guindane (Candinho), Caco Ciocler (Ricardo Pedrosa), Leona Cavalli (Clara), Miriam Pires (Judite), Lázaro Ramos (Dido) e Herson Capri (Marco Aurélio).

Sinopse: A narrativa de “Quanto vale ou é por quilo?” intercala duas histórias separadas apenas pelo tempo do calendário. Escravidão, assistencialismo, violência e corrupção são os ingredientes que ajudam a contar a trajetória de uma sociedade permeada por continuidades. Da luta de uma escrava fugida para proteger sua gravidez, à busca pela dignidade no mundo de livres e libertos, o filme expõe a desigualdade vendida por quilo nos anúncios publicitários. Em meio ao caos, ricos, pobres, protegidos ou indiferentes, são expostos como imagens de um país que produz a permanência de suas mais incômodas características.

Referência para citação: Quanto vale ou é por quilo? Direção: Sérgio Bianchi. Produtores: Sergio Bianchi, Paulo Galvão, Patrik Leblanc, Luís Alberto Pereira e Wellington Pingo. Elenco: Ana Carbatti, Ana Lúcia Torre, Silvio Guindane, Caco Ciocler, Leona Cavalli, Miriam Pires, Caio Blat, Lázaro Ramos e Herson Capri, entre outros. Roteiro: Eduardo Benaim e Sérgio Bianchi (baseado no conto “Pai contra mãe”, de Machado de Assis). Brasil. Ano de lançamento: 2005. Cor. Duração: 110 min.

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