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Nos tempos do tapete vermelho


O filme Tapete vermelho relata o curioso caso do “caipira” Quinzinho. Fã do ator Mazzaropi, ele planeja cumprir uma promessa: levar seu filho Neco para a cidade a fim de assistirem juntos a um filme do personagem Jeca Tatu, repetindo o ritual anteriormente compartilhado entre Quinzinho e seu pai. Mas, como se verá ao longo da história, sua missão vai ser bem mais complicada do que imaginava. A viagem de Quinzinho, Neco, Zulmira (sua esposa) e o burro Policarpo, mais que uma aventura pelos espaços tortuosos que ligam o campo à cidade, será uma odisseia no tempo.
 

Embora cronologicamente contemporâneos, cidade e campo, sob o ordenamento da marcha para o progresso, apresentam distintas temporalidades, que vão se acentuando conforme o choque entre a “modernidade” e o “atraso” vai sendo mostrado no decorrer do percurso. Como se caminhassem sobre uma linha do tempo, Quinzinho e a família seguem a partir de isolados rincões, atravessando pequenas cidades do interior paulista até atingirem a capital no clímax da aventura, uma espécie de síntese histórica da passagem do Brasil rural para o urbano. Mas é no não isolamento desses “mundos”, evidenciado pela presença hierárquica de um sobre o outro, que se encontra a grande questão suscitada no filme: quantos tempos o tempo tem?

A sequência inicial de “Tapete vermelho” apresenta uma das mais conhecidas parcerias do cineasta Mazzaropi com o compositor Elpídio dos Santos, a música “A dor da saudade”. Ouvimos de início sendo cantada pelo próprio interprete do “Jeca Tatu”, e aos poucos sendo substituída pela voz de Quinzinho, que a declama olhando para o alto como se a meditar cada palavra: “A dor da saudade/ Quem é que não tem/ Olhando o passado/ Quem é que não sente/ Saudade de alguém.” O tempo de outrora é, nesse caso, um objeto de culto, que se queria ver perdurar. A mudança, que traz a morte dos entes queridos, a deterioração do corpo, o fim da ingenuidade, está associada a tristeza e melancolia da ausência. O futuro será a saudade do passado. Se não fosse pelos estridentes gritos de sua esposa Zulmira procurando Neco, demoraria muito para Quinzinho despertar da sua mansidão. Mas o tempo passa, e é a saudade que atesta isso, sepultando o outrora vivido.
 

A percepção individual do tempo, sob a influência do contexto social, orienta a maneira como entendemos as transformações, em especial a duração dos eventos, e do ritmo que equilibra alteridades e permanências. Ainda no começo da história de “Tapete vermelho”, ouvimos Quinzinho falando que “tá tudo deferente na roça, só pobre que num muda! É sol, é chuva e nói aqui, labutando! Creditando que um dia o céu vai abrir o mundo no meio e jogá os homi bão, trabaiador prum lado e os mau, vagabundo pro outro, jogá no meio do inferno! Mai acho que nesse mundo de meu Deus, isso nunca vai acontecê, só no outro.” Embora admita que as coisas já não são mais como antes, “nu meu tempo di minino”, as mudanças não são acontecimentos frequentes, até a chegada de um tempo escatológico, em que “o céu abrir o mundo”. Para Quinzinho, seria plausível que os cinemas ainda estivessem a exibir os filmes de Amácio Mazzaropi que ele viu no seu “tempo di minino”. Na verdade, até mesmo as salas de cinema há muito já vinham sendo fechadas nas cidades do interior. Mas, é claro, Quinzinho não sabia disso. Afinal, porque havia de as pessoas não quererem mais estar na sala de cinema vendo os filmes do seu personagem preferido?

Há um aspecto na narrativa que denota uma compreensão cíclica do mundo, já que o objetivo de Quinzinho é refazer os passos do seu pai. Vai levar Neco ao cinema para ver um filme de Amácio Mazzaropi porque assim o fez seu genitor. Então, além de dar continuidade a uma tradição, proporcionando ao filho a mesma experiência, a ação é uma espécie de rito de passagem, consagra a repetição dos atos como forma de legitimar as ações do passado. No entanto, o que torna sua missão complicada é a necessidade de elementos externos ao seu cotidiano, pertencentes a um mundo pautado na linearidade.

Em outro momento do filme, vemos Quinzinho ensinando Neco a pescar. Aqui também temos um conhecimento passado de pai para filho, materializado no rito que envolve não só a técnica da pesca, mas todo um conjunto de referências que se ligam a vida tranquila no campo, em que a paciência da espera dita o ritmo de tudo. No caso da promessa feita ao pai, a situação é outra, pois para que se cumpra, é necessário a existência de um aparato que não depende mais da “preservação” do passado, dos costumes. Pelo contrário, faz parte de um mundo que gira em torno do culto a novidade, ao que não é como era antes. É isso que os afeta, e é nesse sentido que os tempos vão se confrontar no decorrer da jornada deles.

Para que tudo isso se evidencie ao espectador, o enredo nos convida a um passeio inicial pelos lugarejos do sertão, das suas tradições, dos costumes que se mantém na prática da catira, nas intervenções curativas de Zulmira, que representa também o sincretismo entre a religiosidade oficial e a espiritualidade popular; às várias lendas e mitos que vão sendo incorporados a narrativa, como a passagem da cobra-coral pelos dedos para aflorar a excelência do violeiro, a viola que toca sozinha, os rituais nas encruzilhadas, a presença de feitiços e pactos que vão sendo não só mostrados no filme, mas realçados na contação das histórias, cujo ato em si, é um dos elementos mais peculiares dessa tradição.

Essas peculiaridades regionais, marcas daquilo que o tempo mais demora a mudar, a mentalidade e o imaginário, são os traços de identidade a serem substituídos pela introdução de um elemento estranho aquele contexto. Enquanto os adultos brincam, dançam, chama a atenção que as crianças abstém-se de prestigiá-los. Ao invés de apreciar as danças e a cantoria, Neco abstrai-se diante do aparelho de TV da sala. Serão os imberbes os primeiros a serem convertidos. Sem aldeamentos, templos, será pelas antenas que virá a doutrina que conduzirá a todos pela estrada do futuro.
 

Antes, portanto, de adentrarem nas cidades, Quinzinho e família percorrem esses espaços à título de ser apresentado a nós esse outro tempo, contemporâneo e extemporâneo, marcado essencialmente pelos laços entre as pessoas. Ao contrário do que vamos assistir quando adentrarem a urbanidade, impera no campo o compadrio e a solidariedade. O compartilhamento, a economia moral que reforça os vínculos será paulatinamente substituído pelo estranhamento e pelo desprezo, como será caracterizado o individualismo dos citadinos. Entre tantos arcos que vão pontuando a temporalidade e tematizando narrativamente a obra, Quinzinho e família, ao contrário da pernoite passada na casa do amigo ainda no campo, terão que na cidade dormir ao relento, como tantos outros que vivem nesses cantos. Traços, portanto, de uma singularidade em suas vidas, embora recorrência e repetição para muitos, como se verá em outras sequências.

A chegada dos personagens à primeira cidade se dá através de uma carona. Esse é um elemento curioso da trajetória, pois começa a demonstrar que as ferramentas do mundo moderno também são incorporadas pela tradição, e o transporte pode ser lido como um portal para o seu destino: o futuro. Chegando a primeira cidade, Quinzinho reconhece que por se tratar de uma cidadezinha, não deveria haver cinema, se mesmo antigamente não havia. Nesse caso, a presença de uma sala de cinema está associado a certo estágio do progresso. E a partir desse aspecto, o filme também apresenta um comentário indireto a própria história da região paulista do Vale do Paraíba, que ao longo do século XIX assistiu sua decadência como centro da produção cafeeira, suplantada pelas cidades do Oeste do estado. Há uma cena, inclusive, em que um personagem faz alusão a isso, dizendo que depois do período de apogeu do café as cidades estão mortas. Quinzinho rebate dizendo que as cidades podem até estar mortas, mas estão cheias de pessoas vivas, “o único problema é que não tem cinema pra ver Mazzaropi”.

Mesmo reconhecendo que a principal alusão a temporalidade no filme diga respeito a dinâmica alteridade/permanência entre campo e cidade, é possível também observar que existe uma importante forma de entender o tempo a partir da diferença de personalidade entre Quinzinho e Zulmira. Mesmo os dois vivendo no campo, é perceptível que a esposa tem uma mentalidade muito mais prática, porque a lida da mulher, mesmo no campo, lembra a de uma operária, com tarefas muito mais frequentes e incessantes, além de extremamente repetitivas. É ela que vai sugerir que a odisseia proposta pelo marido é “uma perda de tempo”. A mente de Quinzinho, quem sabe alimentada pelos sonhos acordados que tinha enquanto pescava, tem um fluxo mais imaginativo, enquanto Zulmira é extremamente pragmática. Em uma cena, em que são eles convidados a entrar em uma loja, Quinzinho vai olhar a TV, que o funcionário afirma ser melhor que o cinema, enquanto isso Zulmira observa fascinada uma geladeira. Esse é talvez, ao longo de todo o filme, o único aspecto da modernidade que lhe parece interessar.
 

Ao declinar da proposta do vendedor, Quinzinho diz que se ele acha que aquele aparelho é melhor do que cinema é porque talvez nunca tenha assistido a um filme de Mazzaropi no cinema, ou que talvez nem mesmo saiba o que seja cinema. Esse é um paradoxo temporal interessante porque, mesmo associado à modernidade, é notável que pessoas que “vivem no passado” tenham visto filmes em uma sala de cinema, quanto os que “vivem no futuro” não tenham experimentado isso. Essa é uma realidade muito comum no interior do Brasil, em que grande parte dos moradores que tem o hábito de ver filmes, muito provavelmente jamais entrarão em uma sala de cinema, ao contrário de seus pais e avós, o que suscita uma série de reflexões históricas, que ajudam a explicar muitas transformações socias nas últimas décadas.

Ao olhar a passagem daquelas exóticas pessoas, os moradores das cidade veem Quinzinho e sua família como uma espécie de ancestralidade a ser repudiada, registros vivos de um passado que está sendo substituído pelo progresso, e o seu analfabetismo simboliza a persistência dessa faceta da realidade brasileira que a modernidade não admite tolerar. A presença de uma cultura letrada, onde o acesso às informações advém de suportes textuais escritos, como os anúncios, placas informativas que são lidas com dificuldade pelo filho de Quinzinho, é um dos obstáculos concretos a serem enfrentados, embora seja uma das marcas do processo de assimilação cultural, originalmente formada a partir da oralidade, das lendas que vão sendo contadas e que perpassam gerações.

Mas o “Jeca”, como ele é chamado pelos moradores da cidade, segue, quixotescamente, em busca de sua sala de cinema. Não se rende a condição de inferioridade a que querem lhe impor, e lida com os desafios da modernidade a partir de seu próprio universo cultural. Não parece deslumbrar-se ou render-se ao impacto da urbanidade. Inclusive a ironiza, não a considerando em nenhum momento uma evolução ao seu modo de viver. Ele sofre, evidentemente, com o estranhamento causado pela complexidade de um mundo mais aglomerado, mecanizado e metrificado, em que a comida é paga pelo peso, mas isso não causa nele nenhum tipo de apequenamento.

Entre tantas outras referências temporais, destaca-se a que introduz o personagem Mané Charreteiro, um membro do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra). Enquanto conversam, Charreteiro conta que as máquinas chegaram e tiraram o emprego deles. Nesse caso, a modernidade tem uma conotação bastante negativa. Explica a sua luta em prol de conseguir terras através do governo, mas encontra a descrença em Quinzinho, que ressalta: “pouca gente com terra demais, muita sem terra nenhuma, qual é a novidade? É assim desde que o mundo é mundo.” Para Quinzinho, mais uma vez, as coisas tendem a não mudar.


 

Como contraponto, é muito interessante que o filme vá ele mesmo expondo a maneira como as coisas mudam. Pois, vemos vários elementos que caracterizam o tempo que o produziu, e que não mais povoam o nosso cotidiano, como as cédulas de um real que estavam em circulação na época da filmagem, no crescimento das igrejas evangélicas, que ressalta a substituição das crenças populares, e que em si, talvez represente um elemento da modernidade. Até mesmo na presença dos padres que defendem os membros do MST que são presos, retratando o engajamento de parte dos membros do clero em lutas populares. Além disso, vários tempos aparecem no filme em forma de intertextualidade.

Tapete vermelho dialoga com os filmes de Mazzaropi, sendo em verdade uma homenagem a ele, mas interage também com o tempo da produção dos filmes de Mazzaropi, sendo uma homenagem a esses tempos, quem sabe até saudade deles. Todavia, vai além disso e procura atualizar as questões já trazidas à tona em meados do século XX. Se nos filmes do personagem Jeca Tatu, vemos as condições de vida do homem do campo, muitas vezes usados como massa de manobra; surge agora o seu protagonismo político a partir do problema da sua desterritorialização, fruto da produção mecanizada. Se os filmes de Mazzaropi são o retrato de um país que estava se urbanizando, Tapete vermelho faz alusão ao tempo em que os desequilíbrios causados pela forte concentração urbana clama atenção da sociedade.

As metrópoles brasileiras estão apinhadas de bolsões de pobreza, que são especialmente resultado de uma migração forçada das pessoas que viviam no campo, inclusive em regiões distantes do grande centro econômico-financeiro do país. Nesses espaços, propulsores do desenvolvimento, passado e futuro convivem lado a lado. Os resquícios do Brasil agrário e iletrado bate às portas do progresso, que parece a eles perguntar: o que é que vocês estão ainda a fazer aqui? Mas, Quinzinho e Zulmira jamais se sentem inferiores, e em alguns momentos, ao contrário disso, brincam com a cultura dos citadinos, “cheios de firula”.

Essa é uma metáfora interessante para a maneira como muitas vezes nós olhamos para o passado, como se fôssemos superiores a ele. Como se os suplantássemos. A ideia de um tempo baseado na sucessividade gera a sensação ou mesmo o sentido de estarmos caminhando para frente, deixando para trás tudo aquilo que um dia existiu como uma etapa anterior. Seria um exercício de reflexão temporal instigante imaginar o que as pessoas do passado, de cinquenta, cem ou duzentos anos atrás pudessem dizer sobre a nossa vida. O que pensariam, ficaram elas enevoadas sob o manto dos aviões e dos aparelhos de telefone celular, e aceitariam prontamente nossa condição de vencedores, ou como Quinzinho, apesar do avanço técnico, não sentissem a menor inveja de nós? Poderíamos olhar para o futuro também. E se caminhássemos de cidade em cidade, vendo as coisas em tempos vindouros, sendo observados pelos homens e mulheres do futuro, mirando seus olhares curiosos e risonhos sobre nosso modo de falar e vestir? O que diriam? Em certo sentido, a humanidade está condenada a viver em eterno estado de transição. Mas, uma questão: o que poderíamos estar procurando nessa nossa peregrinação ao futuro? O que teria deixado de existir?

De maneira sutil e muito inteligente, Tapete Vermelho faz também uma série de críticas à própria modernidade da produção e difusão cinematográfica no Brasil, que promove enlatados estrangeiros, produtos de uma cultura mundializada, e esquece sua identidade. No duelo final com o dono do Cine Pathé, Quinzinho exige que exibam os filmes de Mazzaropi, e questiona porque eles passam tantos outros filmes e não passam os dele. Há uma série de signos embutidos nessa mensagem. Além das obras de Mazzaropi, fala-se dos filmes brasileiros de uma maneira geral, que encontram sérias dificuldades de distribuição, e quem sabe, até mesmo do próprio “Tapete vermelho”, que enfrentaria, muito provavelmente, o mesmo problema.

Ao menos no conto de fadas que é a história de Quinzinho e sua família, vemos a redenção de todos, inclusive do Jeca Tatu, encantando todos os que entram sem pagar na sala de cinema, cortesia do seu dono, sob a caricatura de um capitalista de charuto na mão, que exibe a sua boa vontade diante de um batalhão de fotógrafos e cinegrafistas que fazem a cobertura midiática do evento, embora ressalte: “somente hoje”. Sim, pois como no conto de fadas, ... foi somente uma vez. Parecendo saber disso, reconhecendo talvez que os tempos são outros, Quinzinho aproveitou para exigir que fosse estendido na entrada um tapete vermelho, para fazer, quem sabe, como “no tempo di minino”.
 

Mas o filme também pode ser percebido como uma grande metáfora sobre como a ideia de modernidade vai aos poucos nos condicionando a inevitabilidade dos processos de substituição do passado, da superação das coisas que não podem mais ser ou existir. A negação do passado pela consagração do novo e de seus suportes, a partir da construção da chamada obsolescência perceptiva. Em uma cena, Quinzinho acaba encontrando no prédio de um antigo cinema transformado em templo religioso, rolos de filmes de Mazzaropi, e entre eles, milagrosamente está o seu tão desejado “Jeca Tatu”. Fica extasiado quando a funcionária da igreja diz que tudo será jogado fora e que ele pode levar o que quiser. Ora, para ele, que não assistiu a chegada do cinema em casa com as fitas VHS, os lasers discs e o formato DVD, aquelas latas de filme são a presença do passado, ou melhor dizendo, a chance de acreditar que ele não se foi, está ali mesmo. A diferença entre o que é lixo e o que é arte pode estar também na maneira como encaramos a velocidade das mudanças, e da necessidade delas, que, sobretudo, deixamo-nos convencer.

Essa assimilação cultural do velho pelo novo, do campo pela cidade, já não é um processo enfim concluído? O tempo já não é agora um só, uma mesma experiência, em que, via cabo, e até mesmo sem ele, estão integradas as visões de mundo e a forma como lidamos com o tempo? Ainda seria possível viajar por espaços e perceber distintas temporalidades? Sintomaticamente, vemos ao final do filme, quando já nossos viajantes haviam retornado, que o “isolamento” da família estava com os dias contados. Numa rima visual muito bonita, Quinzinho é mostrado cantando como no início da história, mas ao mover-se, vemos ao fundo uma antena parabólica. O mundo iria ficar menor para eles agora. Neco, ao invés da limonada que Zulmira oferece, quer um refrigerante.

Entretanto, como todo enredo, seja no filme ou na “vida real”, o tempo é feito de mudanças e permanências. Nosso herói, na inglória luta contra os moinhos de vento do progresso, que destruiu seu imaginário feito saudade, ensinou-nos a mais significativa das lições ainda mesmo antes da jornada começar. Quando Zulmira disse, tentando demovê-lo da fantasia, que Mazzaropi já havia morrido, prontamente responde: “o homi morreu, mas os filme num acaba, não!” A arte, dessa forma, tem como missão, ou ao menos como característica, nos tornar menos humanos, e eternizar nossa presença no tempo. Por quanto tempo?



Tapete vermelho como reflexão histórica em sala de aula:

Bem, caros colegas professores, dirijo mais diretamente a vocês essas últimas linhas, mas creio não excluir necessariamente os demais que chegaram até aqui. Pois, não restrinjo a aprendizagem do conhecimento histórico, muito menos o ato de pensar historicamente, ao quadrado da sala de aula. Ao contrário, imagino que este filme seja uma oportunidade sui generis de proporcionarmos a nós mesmos e aos nossos alunos uma série de reflexões de cunho histórico, envolvendo as noções de tempo e temporalidade. Não é e não será objetivo destas postagens a apresentação de modelos de planos de aula com esquematizações que “facilitem” o trabalho docente, quando na verdade esse tipo de ação muito mais acomoda e retira a autonomia criativa, que é um dos motores desse lugar imprevisível chamado sala de aula.

Trabalhar a apropriação das noções de tempo é um desafio que precisa ser enfrentado em todos os níveis da educação básica, pois lidar com a competência do raciocinar historicamente, exige operar a produção de sentidos sobre o passado como experiência, e o futuro enquanto produção de expectativa. Sendo assim, os conceitos de progresso e modernidade, tão presentes em nosso cotidiano, moldam nossa visão de mundo e orientam nossos caminhos e descaminhos. Precisamos, do mesmo modo, aprender a lidar com as diversidades, que se materializam não somente nas questões de raça, sexualidade ou classe social, mas sobretudo na maneira como atribuímos um sentido a passagem do tempo à nossa volta.

Refletir sobre as circunstâncias da viagem de Quinzinho e de sua família, pode ser um instrumento potente para levar os alunos a reconhecerem a multitemporalidade que os rodeia, e que os conceitos de passado, presente e futuro são muito mais dinâmicos do que aparentam ser. Principalmente em escolas que contam com alunos que advém de áreas rurais, ou até mesmo com filhos de imigrantes (desse jeito acho que termino por abarcar quase todo mundo), eles podem ser instigados a investigar as tradições de suas famílias. Podem ser questionados sobre as crenças e práticas populares mostradas no filme. Podem também refletir sobre a razão dessas tradições estarem sendo abandonadas, do porquê não serem compatíveis com a vida das grandes cidades.

A partir da observação das alteridades e permanências na obra “Tapete vermelho”, pode-se levar os alunos a desenvolver o senso de historicidade a partir da problematização da dicotomia tradição/modernidade. Que conceitos estão associados a essas palavras? Por que a vida no campo é considerado atrasada? Daí, outras questões podem surgir com um debate sobre outros grupos que vivem sob outras ordenações temporais e até mesmo em certo isolamento, como os grupos indígenas. Seria muito pertinente uma discussão sobre a ideia de modernidade em um possível contraponto a vida dos povos originários. Pensar em que tempos vivem, e como dialogam ou se digladiam esses “mundos”.

Ainda sobre o filme “tapete vermelho”, é importante instigar os alunos a perceber as continuidades e descontinuidades do tempo segundo o relato dos personagens. Qual a visão deles do passado e do futuro. Qual tempo é o ordenador que norteia sua vida. Em que sentido as tradições ainda são mantidas e o que está por trás do interesse tanto de sua preservação como de sua substituição. Há no enredo, diversos elementos que podem também suscitar perguntas, tais como: “por que o nome do cachorro de Quinzinho é Coroner? Por que o personagem ressalta que Coroner vai cuidar de sua casa durante a viagem?”

Os alunos também podem ser instigados, a partir dos elementos visuais e alusões históricas do filme, a tentar identificar o tempo de sua produção. Assim como podem mesmo serem desafiados a ressignificar algumas passagens de acordo com o tempo que vivemos. Além disso, como foi sugerido na resenha, podemos “brincar” um pouco de viajantes do tempo e imaginarmos tanto no passado como no futuro, dialogando com pessoas que nos olharão de forma estanha. Mas, nesse caso, não seremos nós mesmos a nos olhar. O que estaríamos dizendo a nós? O que poderiam dizer os alunos a eles mesmos nessa atividade de raciocínio temporal?

Bem, é isso, sei que não abarquei tudo, nem teria como, mas os elementos sugeridos na resenha e nessas notas finais, creio eu, são um bom ponto de partida para um uso proveitoso de “Tapete vermelho” em sala de aula, se a intenção for trabalhar as noções de tempo e temporalidade a fim de desenvolver o raciocínio histórico-temporal dos alunos. Mas é sempre importante rever o filme antes de exibi-lo em sala. Novas questões sempre surgem, e isso faz parte da magia do cinema e da arte de uma maneira geral.

Se esse texto ajudou de alguma maneira, apareça depois por aqui e deixe um comentário. Diga como foi a experiência. Faça também sugestões de aspectos que aqui não foram contemplados. Até mais. Bons filmes. Continuemos viajando pelo tempo através do cinema!

Professor Josemar de Medeiros Cruz

Dados do filme:

• Título: Tapete vermelho
• Direção: Luiz Alberto Pereira.
• Roteiro: Luís Alberto Pereira e Rosa Nepomuceno.
• Ano de lançamento nos cinemas: 2006.
• País de produção: Brasil.
• Duração: 102 minutos.
• Elenco principal: Matheus Nachtergaele (Quinzinho), Gorete Milagres (Zulmira), e Vinícius Miranda (Neco).

Sinopse: Para cumprir uma promessa feita a seu pai, Quinzinho anuncia que vai levar seu filho Neco à cidade para assistir a um filme de Amácio Mazzaropi. Os dois, ao lado da esposa Zulmira, irão peregrinar pelas cidades do interior paulista, na região do Vale do Paraíba, em busca de seu “Santo Graal”: uma sala de cinema que ainda funcione, e que, exiba filmes do personagem Jeca Tatu. Recheado de situações que expõem as diferenças espaço-temporais entre campo e cidade, o filme permite também um olhar sobre o paradigma da modernidade, em contraposição ao atraso da vida no campo, personificados pelos membros da família de Quinzinho, na qual se inclui o burro Policarpo.

Referência para citação: Tapete vermelho. Direção: Luiz Alberto Pereira. Produtores: Ivan Teixeira e Vicente Miceli. Elenco: Matheus Nachtergaele, Gorete Milagres, Vinícius Miranda, Paulo Betti, Rosi Campos, Aílton Graça, e outros. Roteiro: Luís Alberto Pereira e Rosa Nepomuceno. Brasil. Ano de lançamento: 2006. Cor. Duração: 102 min.

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