Tapete Vermelho
janeiro 7, 2020
 

Uma odisseia no tempo


Quando pensamos no tempo, por mais abstrata que seja sua existência, conforta-nos a ideia de que ele representa uma duração. O instante que separa dois eventos. O que nos condiciona a aceitar a tese de que, sem acontecimentos, não poderia haver a noção de tempo. Ele é refém, portanto, do espaço, já que não pode haver nada, ação ou fenômeno, sem o lugar que os abrigue. É o surgimento do universo que propicia a aurora do tempo. Há até quem diga que o tempo transforma tudo. Mas, na verdade, é devido a transformação de tudo, que percebemos o tempo.
 

Todavia, existem várias maneiras de nós percebermos e representarmos o tempo. O cinema é uma delas, uma sequência de imagens projetadas emulando o mundo em constante transformação, um interminável presente que vira passado. Todavia, além de permitir enxergar sua duração, um filme também pode nos instigar a pensar sobre a ideia de tempo, sua multiplicidade, seu ritmo e, mais importante, os significados que atribuímos a essa ação intelectual que ordena e opera a interação que cada instante tem com as experiências produzidas pela memória do passado, e as expectativas em torno de um futuro que nos orienta. Nesse sentido, representar essas questões através de imagens é uma forma de materializar o quanto elas são ainda misteriosas para nós, e mais ainda, fascinantes. O tempo é um enigma.

O filme 2001: uma odisseia no espaço, começa com uma tela escura, que assim permanece durante exatos três minutos. Vê-se, paradoxalmente falando, o nada. Uma falsa impressão de ausência de espaço, sublinhada pela trilha sonora que emula um caos criador. Esse é o registro do tempo em que... não havia tempo. Esse nada, essa ausência, pode significar o instante antes do nascimento. A espera pela iluminação. Para a numerologia, o três teria o poder de unir mente, corpo e espírito, e está associado a inteligência criadora e a busca de novas ideias. Então, logo em seguida, no primeiro grande salto cronológico da obra, visualizamos o alinhamento perfeito entre três astros: a terra, a lua e o sol, o universo já formado, equilibrado e em movimento. Porém, um movimento propositalmente lento, como se a preparar o espectador para o ritmo do próprio filme, e da maneira como seus criadores querem que percebamos a representação do próprio tempo. Nesse momento, já nos encontramos há bilhões de anos daquele escuro inicial.

Após esse prólogo, iremos acompanhar as cenas daquilo que Stanley Kubrick e Arthur C. Clark (roteiristas) vão chamar de “aurora do homem”. Será o primeiro ato do enredo, no tempo em que os ancestrais humanos ainda tinham seus corpos cobertos de pelo e não possuíam linguagem falada. Porém, a aparência de um mundo completamente distinto do qual hoje vivemos é dissipada quando esses homens-macacos digladiarem-se pela propriedade de um poço com água. Finda a luta, o grupo derrotado, refugia-se em um abrigo para passar à noite. Quando acordam, veem-se diante de um estranho objeto retangular e escuro, que remete em proporções geométricas, a imagem que abre o filme. Atordoados e curiosos, nossos antepassados tocam nele.


Em seguida, um desses primatas observa em volta de si um amontoado de ossos. Ao som da mesma trilha sonora que ouvimos no começo do filme (Assim falou Zaratustra, de Richard Strauss), acontece uma epifania, no que parece ser o seu “despertar”, o nascimento de uma nova consciência. Nosso ancestral segura um desses ossos, e começa a usá-lo para destruir o esqueleto de um animal. Intercaladamente, vemos um mamífero sendo abatido, e logo depois suas carnes e vísceras servindo de alimento a todo o grupo. Ato contínuo, esse grupo, agora munido de ossos/armas, retomam seu território.


Esse distante parente do homem, mostrado inicialmente como herbívoro, e indefeso diante do ataque de animais, nutre-se agora com a sua carne. Em êxtase por ter reconquistado seu lugar, vemos o líder atirar a sua arma/osso para cima, e no corte mais famoso da história do cinema, esse objeto dá lugar a outro artefato: uma nave. Embora não mostrado na tela, há, de forma subentendida, a presença do tempo. Ele é aquilo que representamos em nossa mente como intervalo que separa os primatas dos astronautas que vemos à bordo da estação espacial no segundo ato do filme. São quatro milhões de anos, não exibidos, não narrados, mas construídos pela mente do espectador.


 

Aliás, essa é uma das formas mais comuns da cinematografia tratar o tempo: sua supressão pela narrativa. Sabemos que ele existe porque comparamos dois eventos, e percebemos as transformações entre eles. Porém, em toda mudança, há a permanência de alguns elementos que nos permitem estabelecer esse vínculo, uma ponte entre o antes e o depois, que pode ser significado. Sabedores disso, Kubrick e Clark vão distribuir ao longo da obra, uma série de rimas visuais e sonoras que nos conduzirão a uma verdadeira odisseia no tempo. E o que torna essa aventura ainda mais complexa e instigante é observar que, como estamos no ano de 2020, já avançamos cronologicamente além daquilo que o filme previu em seu lançamento, há mais de cinco décadas. O que tinha aquele presente a dizer sobre nosso tempo? E o que ele nos conta sobre as pessoas e o mundo que o criou?

A década de 1960 assistia ao avanço dos sistemas de armazenagem de dados, além dos primeiros programas que iriam permitir uma comunicação mais eficiente entre os homens e as máquinas. Em um histórico discurso, em 1962, o presidente norte-americano John F. Kennedy, garantia que os Estados Unidos enviariam uma nave tripulada a lua antes do final da década. A União Soviética estava à frente dos americanos, o que sugeria o desenrolar de uma intensa disputa, que promoveria um rápido avanço tecnológico. Enquanto isso, assistia-se ao movimento de contracultura. Por isso, toda uma percepção lisérgica da realidade é vista no filme, no uso da trilha sonora, nas cores, nos movimentos das naves no espaço. Nenhum filme está isento de nos dizer de quando veio. De que época foi lançado ao espaço-tempo.

Apesar do mundo em 1968 estar mergulhado na Guerra Fria, e a ameaça de uma destruição total ser uma constante devido ao avanço das armas nucleares, o filme prevê a superação dessa etapa, já que, à priori, não só considera a sobrevivência do homem, como projeta uma possível relação cordial entre americanos e soviéticos. Como tal situação naquele momento não parecia possível, podemos entender que esse aspecto soa muito mais como um desejo dos seus realizadores, quem sabe até uma advertência, para que os contemporâneos entendessem que viagens rumo ao espaço distante pressupunha a união de esforços e objetivos. No futuro imaginado em 2001, a humanidade encontra-se mais avançada tecnologicamente, e somos conduzidos a crer que tudo tenha como momento catalizador, o uso do osso como arma pelo nosso mais remoto ancestral.

Nesse imaginário ano de 2001 viagens espaciais são frequentes, e pessoas trabalham em orbita da terra em uma gigantesca estação. É a partir dela que o Dr. Heywood Floyd partirá em uma missão com destino à lua, para coordenar uma investigação à respeito de um objeto de origem desconhecida, que teria sido deixado lá quatro milhões de anos antes. Porém, como se saberá, trata-se do mesmo objeto avistado por nossos ancestrais. Temos, então, outra rima visual, mais um arco narrativo, que é acentuado pela maneira como vemos os astronautas se comportarem diante do monólito. Admirados, espantados, eles tocam no objeto de forma similar aos homens-macacos no passado. No entanto, compreendem a dimensão do mistério que pode estar por trás dele. Tendo também uma consciência da importância histórica do evento, procuram registrar o fato imageticamente, na tentativa de imortalizar o momento, congelando o presente como futura memória do passado, no que são impedidos pela emissão se insuportáveis sons vindos do monólito, como se fosse um aviso de que ele não está ali para ser admirado, como no tempo dos hominídeos, mas para ser compreendido.

Esse novo contato com o monólito parece afetar novamente a cognição do homem, e assim entramos no terceiro ato do filme. Assistimos a uma nave vagando no espaço com destino a Júpiter. O seu formato nos lembra um espermatozoide, numa alusão ao nascimento do novo homem que virá como resultado dessa aventura no espaço-tempo. Aliás, o ano que dá título a obra não foi escolhido por acaso, pois é o início do novo século, um novo tempo para a humanidade, superando os limites do seu planeta, sendo ele capaz de viajar em busca de suas origens, sendo capaz de enfrentar o grande dilema existencial e temporal: de onde viemos? Para onde vamos? Porém, para que o novo homem nasça, o anterior precisa morrer, e é o que o filme faz metaforicamente.


Devido à distância a ser percorrida, parte da tripulação sofre hibernação. Presos em câmaras que lembram sarcófagos, o tempo para eles está congelado. O plano é despertá-los quando a viagem estivesse próxima do seu destino. Nesse ínterim, a nave é comandada pelos astronautas Dave Bowman e Frank Poole, e pelo computador HAL 9000, caracterizado no filme apenas por algo que se assemelha a um globo ocular vermelho. Este último, curiosamente, parece ser o membro mais humano da tripulação. Os astronautas realizam tarefas repetitivas, quase robóticas. Porém, embora pareça humano na forma de falar, na maneira como pensa e age, HAL é uma criação do homem, uma inteligência artificial, um sintoma de um tempo em que o homem busca transcender-se, o que parece incluir a supressão de emoções.


 

Há uma cena em particular, que demonstra que o homem, através da criação tecnológica, testa seus limites, e, de certa forma, vira um experimento de si mesmo. Como forma de exercitar-se, vemos um dos astronautas correr dentro da nave em círculos, numa referência clara a ratos de laboratório. Se pensarmos bem, muitas missões espaciais, na realidade visavam justamente observar como se dá o comportamento humano no espaço e as reações do seu corpo sob condições de vida estranhas. Novos alimentos, inclusive, foram inventados, assim como diversos outros aparelhos de uso comum hoje em dia, foram fabricados devido a essas experiências. No caso do filme, como há a presença de um computador super avançado, força-se a impressão de que a máquina conduz a experiência, o que nos faria também cobaias sob seu controle.

Em outro momento, HAL e os astronautas concedem uma entrevista para a TV, uma situação que sugere igualar existencialmente a tripulação, embora o computador pareça expressar sentimentos e se articular com mais naturalidade e inteligência. Em sequência, vemos Frank receber uma mensagem de vídeo dos seus pais, desejando-lhe parabéns pelo seu aniversário. Chegam a simular uma pequena comemoração, falando próximo a um bolo. A reação do astronauta é fria e indiferente, desdramatizada. Essa é uma contradição cada vez mais presente na contemporaneidade: um ser humano operando mecanicamente suas ações cotidianas, em círculos repetitivos, que ocupam cada vez mais o seu tempo, enquanto a evolução tecnológica produz robôs (físicos e virtuais) que se assemelham ao comportamento humano. Ver HAL jogando xadrez com Poole é uma perspicaz antecipação do futuro, já que mostra uma aproximação entre o homem e os dispositivos eletrônicos, e por consequência um afastamento dos contatos diretos com as outras pessoas, que passam a acontecer principalmente através desses aparelhos, como aliás, é visto em vários momentos do filme.


 

Próximo ao final do segundo ato, vemos novamente a tela enegrecida. Nesse ponto, sabemos que uma outra transição irá ocorrer. O velho homem do presente irá sucumbir para a chegada do ser iluminado. Metaforicamente, essa consciência evoluída faz alusão ao próprio espectador do filme diante do monólito, que ocupa toda a tela, tornar-se-á capaz de encontrar um significado para essa representação da passagem do tempo. E assim como aconteceu logo após o primeiro monólito aparecer aos primatas, vemos um conflito por controle do território. HAL 9000 começa a matar a tripulação, mas Dave Bowman consegue escapar e inteligentemente desliga o computador. Da mesma forma que o grupo de hominídeos, Dave retoma o controle de seu espaço com uma ferramenta, pois uma chave de fenda é usada para lobotomizar HAL, e superar a máquina. Novamente, passado e presente se “encontram” narrativamente.

Creio ser possível afirmar que o filme 2001: uma odisseia no espaço é uma grande encenação da passagem do tempo. Da mais remota experiência que podemos supor até a projeção de um futuro ainda distante, uma grande síntese imagética procura dar sentido a escalada do progresso humano ao longo de milhões de anos, o que seria, certamente, ininteligível se a única abordagem do enredo fosse a exposição de uma sucessividade linear. Porém, retomando o início do texto, ao pontuar a permanência de certos caracteres, possibilitando ao espectador unir eventos, o filme nos permite reconhecer a presença do tempo. Entre inúmeras singularidades, evidenciadas pelo avanço dos recursos tecnológicos, vemos ainda a humanidade em busca da iluminação. Entretanto, para afirmar-se precisa eliminar seus adversários.

Portanto, se for percebendo a duração e as transformações que nos apropriamos do tempo, é ele o grande personagem do filme 2001, uma narrativa que une passado, presente e futuro, tendo os estágios de desenvolvimento da humanidade como arco temporal. Vemos a mais longínqua e primitiva ancestralidade dar lugar a sua aparente antítese: a civilização. Porém, o cenário polido e idílico do espaço esconde o que na terra ainda aproximam esses tempos. Guerras por territórios, disputas pelo predomínio de tecnologias que nos permitam superar os grupos adversários, fascinação diante do desconhecido, caracterizam certa transcendência, sinais que carregamos ao longo dessa viagem como marcas de nossa espécie. Na caminhada da evolução, os que se adaptam, sobrevivem. Porém, a humanidade também produz as condições de sua sobrevivência, como também as causas de sua potencial extinção.

Esses elementos estão presentes no filme de várias formas, até mesmo no conflito entre HAL e os astronautas. No entanto, é no contexto em que o filme foi produzido que essas questões são mais evidentes. Quando 2001 estreou nos cinemas, uma das facetas mais visíveis da Guerra Fria, era a disputa pelo predomínio da tecnologia espacial envolvendo Estados Unidos e União Soviética. Um ano depois do lançamento do filme, os americanos dão o xeque-mate, e pousam uma nave tripulada na lua, o grande objetivo da chamada corrida espacial, ao menos na sua face publicitária.

Muito mais do que cravar primeiro a bandeira do seu país em nosso satélite natural, desejava-se ocupar o espaço com uma aparelhagem que permitisse vigiar o inimigo. É justamente um desses objetos que vemos logo que o filme passa do primeiro para o segundo ato, após o osso ser arremessado para o céu pelo homem-macaco. O que marca, portanto, a transição narrativa (e a história que imaginamos haver existido) entre esses dois momentos, é a permanência da fabricação de um instrumento (uma tecnologia) que nos permita afirmar nossa superioridade. Não apenas sobre aquele que um dia fomos, mas sobre aqueles com os quais “convivemos” na contemporaneidade.

Apesar disso, não se pode dizer que o ser racional da segunda metade do século XX se iguala ao seu parente de quatro milhões de anos no passado. Kubrick nos fornece uma pista visual fascinante do contrário, quando vemos uma caneta flutuar dentro da aeronave que conduz o astronauta Heywood Floyd para a estação orbital no começo do filme. A ausência de gravidade dentro do veículo espacial faz com que o movimento da caneta nos lembre o osso, inclusive seu formato. Então, não somos só capazes de atirar uma coisa sobre os outros, mas também de escrever poemas, cartas, partituras; embora com uma caneta também se possa assinar uma declaração de guerra.

É essa cultura bélica, nesse contexto especifico de conflito entre capitalistas e comunistas, que vimos impulsionado o desenvolvimento tecnológico, fazendo com que se imaginasse uma tendência a aceleração do progresso das viagens espaciais. O que se poderia pressupor também, devido ao alto investimento das duas superpotências como forma de marcar território. Como analogia, poderíamos dizer que a disputa pelos espaço na segunda metade do século XX, entre americanos e soviéticos, equivaleria ao que no passado foi a briga pelo pequeno poço de água, travada pelos homens-macacos, uma espécie de fase embrionária das transformações sociais que viriam, e que apresentaram quase sempre a conjunção entre a singularidade dos meios e a recorrência dos conflitos. Porém, e esse é um ponto fundamental a se observar, cada estágio dessa “evolução”, é marcado por impulsos que produzem novas expectativas, e leituras diferentes do passado, portanto, a elaboração de novas experiências. Senão, vejamos.

Apenas no ano seguinte ao lançamento do filme assistimos a chegada de uma nave à lua. No entanto, os autores do roteiro imaginavam que no ano de 2001, apenas trinta e três anos depois, a humanidade já possuiria uma base lunar relativamente grande, o que pressupõe a crença de que as viagens à lua fossem algo habitual. Na realidade, apenas poucos anos depois, ainda na década de 1970, as viagens foram interrompidas. Isso mostra como fazemos prognósticos, ou seja, construímos nossas expectativas, de acordo com o tempo presente. Todavia, o contrário dessa afirmação também valeria, pois era o receio do inimigo possuir armas com mais poder de destruição no futuro, que os impulsionava a fabricação de armas e naves mais avançadas. As circunstâncias do desenrolar da Guerra Fria, alterou a visão do futuro.

Apesar do que assistimos nas décadas seguintes ter frustrado os prognósticos do filme, de fato, no começo do século XXI, possuíamos uma estação espacial orbitando em volta da terra, apesar de ser bem mais modesta. No entanto, várias outras tecnologias “previstas” na obra já são uma realidade muito acessível, como a transmissão de som e imagem de uma conversa entre pessoas espacialmente distantes, o uso de telas em formato de cadernos que permitem transmissão de sinais de TV e o avançado estágio da inteligência artificial. Produzido em uma época em que os computadores eram, como o próprio filme, uma ficção cientifica, vemos numa cena o astronauta Frank Poole jogar xadrez com HAL 9000. O computador, aliás, vence o jogo. O que parecia algo inimaginável aconteceu não muito tempo depois, quando em meados da década de 1990, a IBM (marca que aparece nos computadores de bordo usados em uma das naves do filme) criou o Deep Blue, que chegou a vencer o supercampeão Garry Kasparov, numa histórica disputa entre homem e máquina.


 

Essa relação entre o homem e a máquina é outro aspecto que o filme sempre faz questão de pontuar, apesar de não ser uma realidade ainda comum em 1968. Porém, segundo o prognóstico dos seus realizadores, seria em 2001. Quando Heywood Floyd conversa com a filha que está na terra, pergunta o que ela quer de presente quando ele voltar. A menina diz que quer ganhar um telefone e Floyd diz que ela escolha outra coisa, pois já possuíam muitos telefones. Ou seja, nesse caso, há uma certa alusão ao possível excesso de ferramentas tecnológicas devido ao fácil acesso a elas. Aliás, conversar através e com robôs é algo corriqueiro nos dias de hoje. Pois quando interagimos com as máquinas é exatamente isso que fazemos, estamos nos comunicando com elas. Para isso são criadas as interfaces, que nos possibilitam a interação homem-máquina. Há inúmeras formas de atendimento remoto que são feitas através de uma comunicação com inteligências artificiais, que cada vez mais simulam seres humanos, inclusive recebem nomes humanos.

Como reflexão histórica, o filme nos conduz a acompanhá-lo procurando ver as marcas do passado e do futuro no presente. Porém, podemos escolher qual o presente que queremos fazer dialogar com esses tempos, se o que produziu a obra ou aquele em que nos encontramos. Mas, o que Kubrick nos mostra é como nesse processo de crescimento da humanidade, estamos sempre referenciando outros estágios ou saltos evolutivos. Vemos isso na cena em que Dave está prestes a morrer e se encontra num quarto estilizado com uma cenografia que lembra uma decoração renascentista, um tempo (interpretação recorrente à época do lançamento do filme) de superação da Idade das Trevas, da escuridão. Essas e outras cenas tornam a experiência de ver 2001, uma grande metáfora sobre o enigma da passagem do tempo e suas possíveis significações.

Apesar de não ser um fenômeno que possa ser tocado nem visto diretamente, o tempo é algo que pode ser percebido. O cinema frequentemente assume o desafio de representá-lo, e é o que faz 2001, pois como disse o seu diretor, “o que pode ser escrito e pensado, pode ser filmado.” A obra é tanto sobre o passado, como sobre o futuro do homem, além de abordar uma maneira de conectá-los narrativamente. Ou seja, 2001 é um filme histórico porque propõe uma reflexão histórica. Embora o despertar para uma nova forma de consciência formate o novo homem, é o conhecimento do seu passado mais remoto que busca a humanidade ao desejar a conquista do espaço. Saber de onde viemos.

Na cena final, mais uma vez ao som de “Assim falou Zaratustra”, de Strauss, vemos a criança das estrelas, o homem renascido, contemplar o planeta Terra. Será a sua missão construir um novo mundo, enfim? Que lugar ocupará o passado nesse tempo iluminado pela razão transcendente? Ora, temos uma indicação disso ao vermos o momento em que HAL é derrotado por Dave. O astronauta retira os pentes de memória do computador. Com isso ele vai esquecendo tudo o que sabe, e a sua “mente” regride à infância. Sem a experiência e as informações que foi “aprendendo” a processar, HAL se torna ineficiente e superado.
 

Ao longo de toda a obra somos guiados pela presença intermitente do estranho monólito. Diante dele ativamos, nós espectadores, assim como a humanidade na tela, a característica que possibilitou nossa evolução: a curiosidade. Ao longo de milhões de anos fomos inventando, adaptando, enfim, transformando o mundo e a nós mesmos. Porém, nunca estivemos sozinhos, sempre nos apoiamos naqueles que, antes de nós, erraram, destruíram, mas foram paulatinamente ajudando a construir o mundo que hoje temos. O homem novo, seja qual for, será sempre devedor do que ele um dia foi. Assim, mesmo que olhemos para o futuro, seremos orientados pela experiência. Negá-la não nos faz novos homens, pois somos e seremos sempre viajantes do tempo, carregando o passado na bagagem.



A odisseia no espaço da sala de aula: extras

Professor, são inúmeras as possibilidades de se fazer uso de um filme em sala de aula. Uma obra como 2001, então, nem se fala. À primeira vista, o que pode causar estranhamento é a própria sugestão de um filme que grande parte do público considera hermético. No entanto, não percamos de vista que um dos nossos objetivos aqui é promover uma educação do olhar. Então, se ficarmos apenas no convencional, não avançaremos. Dito isto, é verdade que para todo e qualquer público escolar, a escolha do filme precisa se ajustar a faixa-etária dos alunos e os objetivos do professor. Confesso que já trabalhei com esse filme em diferentes formatos, inclusive já exibi apenas trechos da obra para pontuar algumas questões que envolviam o sentido de evolução do homem, e já o assistimos em uma sessão comentada.

Se a finalidade é cerrar fileiras com os alunos para uma tentativa de aguçar a percepção do tempo representado narrativamente, em especial as categorias de sucessividade, alteridade, permanência e transcendência, creio que as várias observações que fiz acima sejam suficientes, embora ainda possa ser complementadas. Porém, ainda no que se refere a compreensão do tempo, dois aspectos ainda podem ser acrescentados. Um deles é questão da intertextualidade.

O filme é cheio delas. E isso é fundamental para a composição de seu enredo, e principalmente da mise-en-scène, ou seja, é a disposição de elementos em cena para se gerar um determinado efeito de significação. Iluminação, cenografia, figurinos e a atuação compõe essa dita encenação do “real” na tela. Vamos a um exemplo: quando Dave Bowman está muito velho, tendo o último contato com o monólito, ele estica o braço para ele, tentando tocá-lo. A cena é uma clara alusão ao afresco “A criação de Adão”, pintado na capela Sistina, por Michelangelo. Como sabemos, o pintor executou suas obras no período renascentista, o que mais uma vez reforça a ideia de um novo nascimento da humanidade. Dessa forma a intertextualidade também é uma forma de trabalhar a relação entre passado e presente, pois este frequentemente lhe faz alusão, e até mesmo registra seus símbolos nas projeções do futuro.

Para finalizar, faço a sugestão de que o professor promova um diálogo entre 2001: uma odisseia no espaço com outro filme, que se propôs a ser uma continuação dele, produzido em 1984, com o título 2010: o ano em que faremos contato, dirigido por Peter Hyams. Apesar de muito inferior enquanto obra de arte, esse filme foi baseado em um livro escrito por Arthur C Clark, que também colaborou com o roteiro, assim como havia feito em 2001 junto com Stanley Kubrick. Os dois enredos, embora se complementem como narrativa, apresentam alguns contrapontos que se prestam a uma exploração didática muito interessante.

Os dois filmes foram produzidos no período da Guerra Fria. No entanto, enquanto no primeiro filme, imaginou-se que, em 2001 russos e americanos talvez tivessem feito as pazes, trabalhando juntos na estação orbital, não havendo nenhum sinal de animosidade entre eles; em 2010, o mundo está sob uma forte ameaça da temida guerra total. Apesar de circunstancialmente “forçados” a irem juntos na missão espacial, o clima hostil entre os dois países na terra acaba por refletir nas relações entre os tripulantes. O filme 2010, em seu desfecho tem uma mensagem pacifista, coisa que não era uma preocupação visível em 2001: uma odisseia no espaço.

O professor pode sugerir aos alunos uma pesquisa que os instigue a compreender o clima de tensão entre as duas superpotências no momento da produção de cada um dos filmes, investigando como Estados Unidos e União Soviética, no final da década de 1960 e início dos anos 80, quando as duas obras foram lançadas no cinema, moviam suas peças nesse grande jogo de tabuleiro que era a Guerra Fria. E quem sabe discutir de que forma esses filmes dialogam com aquele tempo, e com o futuro que eles projetaram, que pode ser também o tempo em que vivemos. Até que ponto somos ou seremos parecidos com a ficção. E o que há de factual e fantasia em cada dessas obras, são também questões relevantes.

Ademais, é possível levar os alunos a pensar sobre a própria ideia de evolução. Procurando estimulá-los a perceber na permanência de algumas características humanas, uma conexão com outros tempos. Talvez uma raça que excessivamente olhe para cima e para frente, acabe por não reconhecer os motivos que não permitem que alguns problemas sejam superados. Talvez o nascimento da nova humanidade, como o filme talvez queira sugerir indiretamente, advenha dessa competência de pensar historicamente, ou seja, levando em consideração as necessárias conexões entre passado, presente e futuro, no sentido efetivo de nos descobrir.

Como deixei claro, 2001: uma odisseia no espaço não é um filme fácil, e certamente é um tipo de experiência cinematográfica estranha para a maioria dos alunos. Sendo assim, talvez seja preciso preparar bem a turma, fazer uma pré-discussão sobre o seu contexto de produção e o impacto que o filme teve na época e para a história do cinema como um todo. Inclusive levando em consideração o fato de que, ao longo das décadas ele foi sendo redescoberto, e muitos que o criticaram, e/ou não entenderam, hoje reconhecem a sua excelência como obra de arte. Ou seja, este filme, em certo sentido, faz a função do monólito nele apresentado, uma espécie de enigma à espera da nossa capacidade de decifrá-lo.

2001: uma odisseia no espaço

Dados do filme:

• Título: 2001: uma odisseia no espaço
• Título original: 2001: a space odyssey
• Direção: Stanley Kubrick
• Roteiro: Stanley Kubrick e Arthur C Clark
• Ano de lançamento nos cinemas: 1968
• País de produção: Inglaterra e Estados Unidos
• Duração: 149 min.
• Elenco principal: Keir Dullea (Dr. Dave Bowman), Gary Lockwood (Dr. Frank Poole), William Sylvester (Dr. Heywood Floyd) e Daniel Richter (Moon Watcher).

Sinopse: O filme é dividido em três atos. No primeiro, vemos uma representação da “aurora do homem”. Nela, o espectador é levado a pré-história, onde assiste a um estranho monolito despertar a cognição de nossos ancestrais. Em seguida, embarcamos com um grupo de astronautas numa viagem à lua, a fim de investigar um enigmático objeto enterrado muito tempo antes. No terceiro ato, acompanhamos Frank Poole, Dave Bowman e o computador HAL 9000 em busca da origem de sinais alienígenas emitidos de Júpiter. Esses são os estágios da viagem no espaço, e no tempo, que o filme propõe ao espectador. Uma busca por evolução e autoconhecimento.

Referência para citação: 2001: uma odisseia no espaço. Direção: Stanley Kubrick. Produtores: Stanley Kubrick e Victor Lyndon. Elenco: Keir Dullea, Gary Lockwood, William Sylvester e Daniel Richter, entre outros. Roteiro: Stanley Kubrick e Arthur C Clark. Título Original: 2001: a space odyssey. Inglaterra e Estados Unidos. Ano de lançamento: 1968. Cor. Duração: 149 min.

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