Um grande trauma coletivo ajuda a entender historicamente a formação do caráter de um povo. Diante de uma guerra perdida ou mesmo de um revés das forças da natureza, é interessante tentar compreender como uma dada sociedade reconstrói seu modo de vida como resposta às contingências do tempo. No Brasil, o maracanazo é particularmente lembrado como um evento desse tipo. O momento em que o país sucumbiu ao drama de ser derrotado não apenas em um campo de futebol, mas atingido em seu orgulho como nação, condenado ao estigma do complexo de vira-latas, e de ser um lugar onde as coisas não darão certo. A derrota da equipe brasileira diante de estimados 200 mil espectadores presentes no estádio do Maracanã e de tantos milhões perplexos radiouvintes, tem poucos paralelos. É bem verdade, entretanto, que esse desastre pesou mais sobre os ombros de alguns. E acima de todos, sobre os do goleiro Moacir Barbosa. Mas antes de chegar nos 34 minutos do segundo tempo, e no motivo que teria legado a Barbosa a responsabilidade pelo fracasso épico, façamos um breve passeio pelo cenário, a paisagem histórica que se apresentava na virada para a segunda metade do século XX.
O curta-metragem “Barbosa” como mediador para uma reflexão histórica
O filme “Barbosa”, lançado em 1988, é inspirado no conto “O dia em que o Brasil perdeu a Copa”, do falecido jornalista e crítico de cinema Paulo Perdigão, publicado originalmente em 1975 em uma edição da revista Ele Ela, e depois republicado no livro “Anatomia de uma derrota”, do mesmo autor. À princípio apresenta uma narrativa típica de viagem no tempo, tendo como pano de fundo, o contexto do simbólico desastre do Brasil na copa de 1950 e como fio condutor a obsessão do personagem Paulo, vivido pelo ator Antônio Fagundes, em voltar ao passado e mudar os fatos historicamente conhecidos. Levando em conta o contexto de produção, é preciso colocar esse filme como um produto também de sua época, posto que nos anos 1980 houve uma leva de filmes que tratavam de experiências de viagem no tempo. Entretanto, à despeito de apresentar alguns elementos comuns a esse tipo de enredo, como o próprio ato de interferir na linha temporal, e do “paradoxo de Bootstrap”, bastante presente em filmes e séries atualmente, como o caso da produção alemã Dark, o filme de Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado, vai além e fornece muitas reflexões de natureza histórica. Na primeira parte do texto, procurei expor o imbricamento entre esses dois personagens, que são ao mesmo tempo reais e imaginários, em muitos sentidos. O Paulo que viaja no tempo é uma peça de ficção criada pelo jornalista Paulo Perdigão. Entretanto, a experiência vivida e revivida pelo autor é o seu leitmotiv. O enredo ficcional é produto de uma memória construída e reconstruída com o passar dos anos. Moacir Barbosa não foge, à rigor, desse duplo. Real em seu sofrimento, ele é parte essencial do imaginário que se criou em torno do maracanazo, a causa precipitante do fracasso da nação. Misturar essas duas personas serve como uma chave de compreensão do filme, pois todo ele trata, afinal, da invenção de um passado. Paulo quer reinventar o passado. Quer ter uma máquina para escrever o tempo. Ao ver os apressados torcedores que caminhavam em direção ao estádio, percebe que eles não sabiam que deus estava ali, era ele. Naquele momento, Paulo, em suas próprias palavras, “era maior que a história”. Sim, nesse sentido um deus ex machina, aparecendo para dar um novo desfecho ao enredo, refazendo o fato. Embora esse tal fato não estivesse ainda feito, do ponto de vista de todas as outras pessoas que estavam no estádio com Paulo. Aqui já temos um dos aspectos mais interessantes no que se refere ao pensamento histórico, e que inúmeras vezes afeta nossa consciência e forma de enxergar o passado: a visão retrospectiva. Quando estudamos um acontecimento, sabemos como ele vai terminar, e isso, evidentemente, “corrompe” nossa forma de entendê-lo. No entanto, considerando noções de tempo e temporalidade, uma atitude historiadora precisa levar em conta o elemento contextual. Portanto, ver-se, imaginar-se, enxergar as alternativas e expectativas das pessoas, que não conheciam o desfecho do processo. Assim como, considerar o espaço de experiência produzido por eles, sem os “contaminar” com a post factum. No caso da história do filme, como saber se o Brasil seria melhor ou pior se ganhasse a copa? Impossível saber, mas como lembra Paulo, ele está ali para resolver o seu problema, e o de Barbosa.Os possíveis usos didático-pedagógicos do filme “Barbosa”
O filme apresenta diversos elementos que podem ser utilizados na construção de uma proposta de intervenção pedagógica pelo professor de História. Além dos muitos aspectos que já foram mencionados acima, o professor ainda pode desenvolver uma interessante reflexão que envolve a própria natureza do conhecimento histórico, em especial no que se refere as diferenças entre ficção e realidade, e a partir daí, propor um debate em torno dos conceitos de fato e acontecimento. Ou seja, como o fato de o Brasil perder uma partida de futebol na copa do mundo ganhou tanta repercussão social, reverberando por décadas? Como a falha de um goleiro no lance que culminou com o segundo gol uruguaio justificou uma violência simbólica por tanto tempo? Como e por que esses fatos foram transformados em acontecimentos? Essas perguntas levam a uma investigação em torno do papel daqueles que escrevem a história, e da distinção entre os agentes da história e aqueles que agenciam as narrativas. É relevante, nesse contexto, considerar o papel dos órgãos de impressa na formatação da notícia, no registro e acompanhamento dos fatos, que acaba por contribuir para que estes se tornem acontecimentos. Hoje temos uma real e urgente necessidade de problematizar essas questões em sala de aula, contribuindo para a formação da chamada educação midiática, através de um trabalho de construção de um pensamento crítico diante da profusão de notícias que acessamos diariamente. Além de mudar os fatos, Paulo queria documentá-los. Ele leva na viagem uma câmera de vídeo. Seria interessante pensar o significado da ação cotidiana de registrar momentos que consideramos importantes em nossa vida. Lembrar que quando fazemos isso, estamos nos relacionando com o futuro enquanto expectativa. Fabricamos imagens que serão vistas no futuro, e sobre elas algum significado será produzido sobre o passado nelas representado. No filme, vemos a presença de muitos elementos alusivos ao passado: a narração do rádio, as imagens em preto e branco dos jogos da copa de 1950, a fala do prefeito do Distrito Federal, na época o Rio de Janeiro, entre outros.