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A máquina de escrever o tempo


“No Brasil, a pena máxima de prisão é de 30 anos, mas pago há 40 por um crime que não cometi”. Moacir Barbosa

Um grande trauma coletivo ajuda a entender historicamente a formação do caráter de um povo. Diante de uma guerra perdida ou mesmo de um revés das forças da natureza, é interessante tentar compreender como uma dada sociedade reconstrói seu modo de vida como resposta às contingências do tempo. No Brasil, o maracanazo é particularmente lembrado como um evento desse tipo. O momento em que o país sucumbiu ao drama de ser derrotado não apenas em um campo de futebol, mas atingido em seu orgulho como nação, condenado ao estigma do complexo de vira-latas, e de ser um lugar onde as coisas não darão certo. A derrota da equipe brasileira diante de estimados 200 mil espectadores presentes no estádio do Maracanã e de tantos milhões perplexos radiouvintes, tem poucos paralelos. É bem verdade, entretanto, que esse desastre pesou mais sobre os ombros de alguns. E acima de todos, sobre os do goleiro Moacir Barbosa. Mas antes de chegar nos 34 minutos do segundo tempo, e no motivo que teria legado a Barbosa a responsabilidade pelo fracasso épico, façamos um breve passeio pelo cenário, a paisagem histórica que se apresentava na virada para a segunda metade do século XX.

 
Finda a “era da catástrofe”, iam sendo retomados os rituais coletivos interrompidos pelas sangrentas batalhas da II Guerra Mundial. Prevista, mas não realizada nos anos 1942 e 1946, a copa do mundo de futebol só teria uma nova edição em 1950. Coube ao Brasil a responsabilidade e a oportunidade de sediá-la. Intercalada entre duas ditaduras, a “brecha democrática” instigava a aspiração de novos tempos. Realizar o campeonato mundial de futebol era atrair a atenção internacional para o Brasil e a dos brasileiros para o futuro, para o progresso, para a modernidade liberal e industrial, simbolizada na edificação de um colosso, o Maracanã, o “maior estádio do mundo”.
 
 
Naquele tempo, o Brasil possuía um contingente populacional que perfazia apenas um quarto do atual, ainda marcadamente rural e com um índice de alfabetização que não chegava a 50% entre os adultos. O principal meio de comunicação de massa era o rádio, e por esse aparelho o torneio seria acompanhado. Enfrentar os fracos índices de desenvolvimento humano, fomentar a ainda precária industrialização e consolidar a república não seria tarefa para se resolver no curto prazo, mas se poderia ao menos alimentar o ego patriótico com o tão sonhado título de melhor do planeta, no futebol. Assim como o Maracanã, todo o cenário foi construído para esse ato final, cujo clímax conduziria o povo a catarse, por obra dos heróis, aqueles onze jogadores com as camisas brancas, a “pátria de chuteiras”.
 
 

Como na realização de um filme, todo o roteiro planejado foi sendo fielmente cumprido. Na fase final, enfrentaríamos três seleções: Suécia, Espanha e Uruguai, nessa sequência. 7 a 1 e 6 a 1 foram os resultados dos dois primeiros jogos. Faltava o último dia de filmagem. Faltava o último jogo. E, infelizmente para os brasileiros, os antagonistas haviam planejado outro final feliz, que não coincidia com as palavras proferidas pelo prefeito do Rio de Janeiro, pouco antes do apito inicial: “Brasileiros! Vós que daqui a alguns minutos sereis sagrados campeões do mundo. Vós que não tendes rivais em todo o planeta. Vós a quem eu já saúdo como vencedores. Cumpri minha palavra construindo esse estádio. Cumpram agora o seu dever, derrotando o Uruguai!”

Quem ousaria ir contra o destino? Aliás, como disse o prefeito, contra o dever? Para que tudo se completasse, aqueles que “não tinham rivais no planeta” poderiam até empatar, que seriam campeões assim mesmo. O Uruguai chegou àquela última rodada com um ponto a menos. E para complicar a situação, o Brasil marcou o primeiro gol, logo na abertura da segunda etapa. Faltavam agora pouco mais de 40 minutos. O locutor de uma rádio que transmitiria o jogo, mais cedo havia lembrado que o empate já bastaria para o Brasil ser campeão, porém “todos nós, brasileiros, duzentos mil aqui no estádio e mais de cinquenta milhões do Oiapoque ao Chuí, esperamos coroar este título com uma grande vitória frente ao Uruguai, repetindo, quem sabe, as goleadas contra a Espanha e a Suécia.” Mas em toda epopeia há requintes de dramaticidade; e vinte minutos depois estava empatada a partida.

Já não se esperava mais uma goleada nos moldes dos embates anteriores. E por enquanto, o roteiro do destino ainda era seguido. A glória seria alcançada na dor, e no drama da plateia. Porém, tudo se transformou em perplexidade e silêncio há exatos 11 minutos para o término do jogo. O chute de Ghiggia não defendido pelo guarda metas brasileiro, calou “o maior do mundo”, silenciou as 200 mil vozes presentes no estádio e provavelmente a de todos os ouvintes que em casa não puderam ver a festa dos jogadores uruguaios. Embora acometidos de profunda tristeza, nenhum destes sofreram tanto e por tanto tempo quando Paulo e Barbosa.

Paulo era um menino, um dos 200 mil espectadores que, das arquibancadas, não acreditava naquilo que via. Como pode ser o destino alterado, o que estava escrito não se realizar? Quando criança, ele lembra, tinha “certeza de que todos os meus sonhos eram possíveis.” E “o jogo final com o Uruguai parecia uma formalidade a ser cumprida antes da festa.” Traumatizado, Paulo perseguiu o sonho durante mais de três décadas de criar uma máquina do tempo, um aparelho que lhe permitisse voltar para àquela tarde. O objetivo de Paulo era alterar os acontecimentos, evitar o gol de Ghiggia, reescrever a história, e reescrever a sua própria história. Consequentemente, reescrever a história de Moacir Barbosa. Este, ao contrário do personagem ficcional do curta-metragem de Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado, teve que enfrentar uma dura realidade: carregar a culpa de não termos tido em 16 de julho de 1950, um final feliz.

 
 

Na ficção, é bem mais fácil obter um final feliz, basta inventar. Na vida real, como lembra Barbosa em uma entrevista mostrada no filme, “em nada vai voltar as coisas que aconteceram, nós não vamos voltar ao passado”. Mas é exatamente isso que o personagem Paulo quer fazer, viajar ao passado e alterá-lo, e, por efeito, tudo o que ocorreu depois que o árbitro inglês George Reader apitou o final do jogo contra o Uruguai. Redimir Barbosa, evitar o trauma da derrota e “fazer justiça” ao povo que tinha como certa a vitória, exigiria voltar a 1950 e impedir que o atacante Ghiggia marcasse o gol de virada. Já adulto, Paulo retorna ao Maracanã, para o centro espacial e temporal do seu pesadelo. Diante dele, a imagem de um garoto abraçado ao pai, durante a euforia do gol marcado pelo Brasil. Aquele instante era, ao mesmo tempo, o seu passado e o seu presente. Ele tinha 11 e 49 anos.

Barbosa tinha na época 29 anos e era um dos melhores goleiros do futebol brasileiro. Mas, ao não conseguir defender o chute desferido pelo atacante uruguaio, ele foi condenado pelo fracasso do time. Para salvar Barbosa dessa situação, Paulo entraria em campo e no exato momento em que Ghiggia se preparasse para o chute, dar-lhe-ia um soco. Atrapalhado por um segurança que dificulta seu acesso ao gramado, acaba fracassando, e descobre-se condenado ao pesadelo de repetir a história.

 

O curta-metragem “Barbosa” como mediador para uma reflexão histórica

O filme “Barbosa”, lançado em 1988, é inspirado no conto “O dia em que o Brasil perdeu a Copa”, do falecido jornalista e crítico de cinema Paulo Perdigão, publicado originalmente em 1975 em uma edição da revista Ele Ela, e depois republicado no livro “Anatomia de uma derrota”, do mesmo autor. À princípio apresenta uma narrativa típica de viagem no tempo, tendo como pano de fundo, o contexto do simbólico desastre do Brasil na copa de 1950 e como fio condutor a obsessão do personagem Paulo, vivido pelo ator Antônio Fagundes, em voltar ao passado e mudar os fatos historicamente conhecidos. Levando em conta o contexto de produção, é preciso colocar esse filme como um produto também de sua época, posto que nos anos 1980 houve uma leva de filmes que tratavam de experiências de viagem no tempo. Entretanto, à despeito de apresentar alguns elementos comuns a esse tipo de enredo, como o próprio ato de interferir na linha temporal, e do “paradoxo de Bootstrap”, bastante presente em filmes e séries atualmente, como o caso da produção alemã Dark, o filme de Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado, vai além e fornece muitas reflexões de natureza histórica.

Na primeira parte do texto, procurei expor o imbricamento entre esses dois personagens, que são ao mesmo tempo reais e imaginários, em muitos sentidos. O Paulo que viaja no tempo é uma peça de ficção criada pelo jornalista Paulo Perdigão. Entretanto, a experiência vivida e revivida pelo autor é o seu leitmotiv. O enredo ficcional é produto de uma memória construída e reconstruída com o passar dos anos. Moacir Barbosa não foge, à rigor, desse duplo. Real em seu sofrimento, ele é parte essencial do imaginário que se criou em torno do maracanazo, a causa precipitante do fracasso da nação. Misturar essas duas personas serve como uma chave de compreensão do filme, pois todo ele trata, afinal, da invenção de um passado.

Paulo quer reinventar o passado. Quer ter uma máquina para escrever o tempo. Ao ver os apressados torcedores que caminhavam em direção ao estádio, percebe que eles não sabiam que deus estava ali, era ele. Naquele momento, Paulo, em suas próprias palavras, “era maior que a história”. Sim, nesse sentido um deus ex machina, aparecendo para dar um novo desfecho ao enredo, refazendo o fato. Embora esse tal fato não estivesse ainda feito, do ponto de vista de todas as outras pessoas que estavam no estádio com Paulo.

Aqui já temos um dos aspectos mais interessantes no que se refere ao pensamento histórico, e que inúmeras vezes afeta nossa consciência e forma de enxergar o passado: a visão retrospectiva. Quando estudamos um acontecimento, sabemos como ele vai terminar, e isso, evidentemente, “corrompe” nossa forma de entendê-lo. No entanto, considerando noções de tempo e temporalidade, uma atitude historiadora precisa levar em conta o elemento contextual. Portanto, ver-se, imaginar-se, enxergar as alternativas e expectativas das pessoas, que não conheciam o desfecho do processo. Assim como, considerar o espaço de experiência produzido por eles, sem os “contaminar” com a post factum. No caso da história do filme, como saber se o Brasil seria melhor ou pior se ganhasse a copa? Impossível saber, mas como lembra Paulo, ele está ali para resolver o seu problema, e o de Barbosa.

 
 

O problema de Barbosa começou na suposta falha no segundo gol do Uruguai. Mas provavelmente haveria uma outra, de ordem natural, digamos. Ele era negro. Em uma sociedade racista, ele foi “o homem que fez o Brasil chorar”, epíteto que carregou por cinquenta anos. Mas a história de vida de Barbosa, é por si, um exemplo de como a história, se não pode ser refeita, pode ser reescrita. Em 2020 está sendo concluída a construção de um centro de treinamento do Clube de Regatas Vasco da Gama, agremiação defendida por Barbosa. O Vasco foi um dos pioneiros em utilizar jogadores negros em suas equipes. Fato que é lembrado com orgulho por seus torcedores. Assim, eles próprios iniciaram uma campanha para que a diretoria do clube batize o local com o nome de Barbosa.

Temos aí dois aspectos muito relevantes. Embora na data de publicação desse texto, a campanha ainda esteja em curso, e pode não culminar com a escolha do nome, homenagear o goleiro Moacir Barbosa é uma forma de reabilitá-lo, destacando sua importância para o clube. Mas é também uma maneira de enaltecer o próprio Vasco, possivelmente até mais que a Barbosa. Nesse caso, exclamando o feito de se posicionar contra o preconceito racial nas primeiras décadas da história do futebol no Brasil, reforçando valores identitários historicamente constituídos. Além disso, atualiza o papel do clube em torno dessa questão, já que o racismo está novamente na ordem do dia do noticiário em todo o mundo, devido as manifestações após o assassinato de George Floyd. Dessa forma, lembrar Barbosa é indiretamente repudiar atos racistas, o que reforça a tese de que o goleiro deles foi vítima.

Ao narrar o drama de Barbosa e de Paulo, o filme apresenta o acontecimento histórico de um ponto de vista pessoal, livre do manto da consciência coletiva. Falar do sentimento de fracasso que se abateu sobre o povo brasileiro após a derrota, permite enxergar um viés da realidade, pois expõe a dimensão social da tragédia, mas não descortina por completo a natureza traumática que tal evento desencadeou nos que dela participaram, em especial os jogadores e os presentes no estádio do Maracanã. E aqui temos um aspecto relevante a ser considerado: o estabelecimento de uma empatia que pode nos conduzir a uma compreensão do passado. Com Paulo, temos um nome, um sujeito, um ponto de vista.

Se conseguisse mudar o fato de o Brasil sofrer o segundo gol, Paulo evitaria a glória da seleção uruguaia, um feito até hoje comemorado naquele país, que jamais ganhou outra copa do mundo. Assim, o mesmo evento possui múltiplos ângulos de visão. A missão de Paulo era reescrever a história segundo o seu ponto-de-vista. O que não é possível exatamente. Mas é o que muitas vezes é feito através da escrita da história. Se não fosse aquele jogo, ou aquele gol, Barbosa teria entrado para a história como um dos nossos melhores goleiros, o que de fato foi. Mas preferiu-se escrevê-lo nas páginas do tempo como vilão. O que poderá ser sempre mudado à luz do contexto do narrador. Quantos personagens históricos não foram demonizados e depois reabilitados? Estaria o próprio filme “Barbosa” tentando fazer isso?

É possível também que não vejamos mais a copa de 1950 da mesma forma. Primeiro porque a maioria das pessoas que viveram aquele clima fúnebre que se abateu sobre o Brasil já não estão vivas. A seleção brasileira ganhou cinco copas. Mas perder dentro de casa, esse era o pecado imperdoável. Aí, veio 2014. É provável que o novo fracasso tenha ao menos diminuído o fantasma do maracanazo. Talvez não. Aquele era um momento de afirmação do país. Ao final, como expressão coletiva, foi o fracasso da nação; para Barbosa, sua condenação à prisão perpétua. Reescrevendo a história, Paulo não queria mudar o passado, e sim o presente. Eliminando a causa de seu trauma, libertaria Moacir Barbosa.

Essa seria, conclui o personagem do filme, uma forma de fazer justiça com a história. Ele, como um autoproclamado deus, mudaria não a maneira de ver e registrar o fato segundo o seu ponto de vista, mudaria o próprio fato. Já os historiadores não possuem uma máquina do tempo, não podem voltar ao passado e alterá-lo, mas podem reescrevê-lo. E assim nos conduzem, de certa maneira, de volta no tempo. Mas não só os historiadores fazem isso. O filme “Barbosa”, que na montagem mistura documentário e ficção, alimentada pela sugestão de contrafactualidade, sugere um novo olhar sobre o passado. O cinema pode ser também uma maneira de nos fazer pensar sobre nossa relação com ele.

Enfim, de uma maneira geral, penso que produzir uma reflexão de natureza histórica é uma espécie de ação intelectual que mobiliza passado, presente e futuro como peças de um quebra-cabeça. É impossível determinar com qual delas começamos a montar a imagem que representa nossa experiência. No entanto, ao construir narrativas que expliquem essa imagem, vemos que a história não apenas escreve o tempo, escreve com o tempo.

 
 

Os possíveis usos didático-pedagógicos do filme “Barbosa”

O filme apresenta diversos elementos que podem ser utilizados na construção de uma proposta de intervenção pedagógica pelo professor de História. Além dos muitos aspectos que já foram mencionados acima, o professor ainda pode desenvolver uma interessante reflexão que envolve a própria natureza do conhecimento histórico, em especial no que se refere as diferenças entre ficção e realidade, e a partir daí, propor um debate em torno dos conceitos de fato e acontecimento. Ou seja, como o fato de o Brasil perder uma partida de futebol na copa do mundo ganhou tanta repercussão social, reverberando por décadas? Como a falha de um goleiro no lance que culminou com o segundo gol uruguaio justificou uma violência simbólica por tanto tempo? Como e por que esses fatos foram transformados em acontecimentos?

Essas perguntas levam a uma investigação em torno do papel daqueles que escrevem a história, e da distinção entre os agentes da história e aqueles que agenciam as narrativas. É relevante, nesse contexto, considerar o papel dos órgãos de impressa na formatação da notícia, no registro e acompanhamento dos fatos, que acaba por contribuir para que estes se tornem acontecimentos. Hoje temos uma real e urgente necessidade de problematizar essas questões em sala de aula, contribuindo para a formação da chamada educação midiática, através de um trabalho de construção de um pensamento crítico diante da profusão de notícias que acessamos diariamente.

Além de mudar os fatos, Paulo queria documentá-los. Ele leva na viagem uma câmera de vídeo. Seria interessante pensar o significado da ação cotidiana de registrar momentos que consideramos importantes em nossa vida. Lembrar que quando fazemos isso, estamos nos relacionando com o futuro enquanto expectativa. Fabricamos imagens que serão vistas no futuro, e sobre elas algum significado será produzido sobre o passado nelas representado. No filme, vemos a presença de muitos elementos alusivos ao passado: a narração do rádio, as imagens em preto e branco dos jogos da copa de 1950, a fala do prefeito do Distrito Federal, na época o Rio de Janeiro, entre outros.

 
 

Aliás, a importância do rádio é um aspecto a ser trabalhado, já que ele era o grande meio de comunicação de massa da época. A fama dos artistas era através de suas ondas construída. Logo no início do filme ouvimos uma música, a "Marcha do scretch brasileiro", de Lamartine Babo, trilha sonora que embalava a torcida. Tocar essa música em sala de aula é uma forma de produzir uma “presença do passado”. É importante apresentar a letra e destacar os elementos patrióticos. Tratar da importância dessas marchinhas na época e mencionar a importância de seu compositor na história da música brasileira. Lamartine Babo compôs músicas para vários clubes do Rio de Janeiro naquele tempo, tendo algumas se tornado seus hinos, como é o caso dos do Flamengo, Vasco, Botafogo, Fluminense e América.

Ainda sobre o debate em torno da letra da “Marcha do scretch brasileiro”, com a ajuda do professor de Geografia, podem ser abordados os conceitos de nação, nacionalismo, povo e país. E a partir dos elementos visuais que aparecem na tela, investigar as transformações espaciais que marcaram a paisagem urbana no Brasil nos últimos 70 anos, período em que esse processo se intensificou. Inclusive, pode ser usado como recorte temporal o período compreendido entre as duas copas do mundo realizadas no Brasil, 1950 e 2014. Estabelecer uma comparação no que se refere a sociedade brasileira nesses dois momentos. Assim, o professor ajuda o aluno a contextualizar cada período. Além disso, seria interessante ressaltar também o contexto do filme.

A recente Base Nacional Comum Curricular ressalta a importância de se trabalhar com a linguagem do cinema na escola, destacando o papel da leitura de imagens, estáticas e em movimento. Chama a atenção para narrativas que, pelo grau de atração que provocam, conduzem a aprofundamentos posteriores; servem como suportes para identificação de sentidos, além de permitirem a produção de outros textos. E, entre outros possíveis tratamentos, a BNCC propõe um estímulo ao convívio de gêneros textuais. O filme “Barbosa”, como ressaltei acima, tem como base o conto “O dia em que o Brasil perdeu a copa”, publicado 16 anos antes do lançamento do filme. Portanto, o professor pode promover um diálogo entre a linguagem escrita e o texto imagético.

Nesse ponto, é de substancial importância pensar os contextos de produção de cada objeto, a maneira como eles se relacionam com o tema representado, além, obviamente, instigar o levantamento de hipóteses que justificam sua adaptação. Nesse sentido, pode ser uma atividade muito proveitosa, junto com os alunos, perceber quais elementos foram usados pelo filme, e quais outros foram modificados em relação ao texto-base. Por que essas alterações foram feitas? Esse “arranjo” narrativo foi motivado por demandas próprias do gênero fílmico? Professores e professoras de Arte podem contribuir bastante aqui. Essas e outras questões levantadas pelo professor, sugestão minha, poderiam ter como finalidade levar os alunos a perceber as diferenças entre gêneros textuais. E como lembra a BNCC, evitar a hierarquia entre eles, procurando também não substituir o texto escrito pela “facilidade” da apresentação de imagens em movimento.

Além disso, ou seja, do esforço de comparação entre o texto do conto e o filme, é possível trabalhar com o roteiro escrito para as filmagens. Perceber como ele é um elo entre a obra original e a versão filmada. Com isso, o aluno pode desenvolver outro tipo de cognição, que é a apreensão do processo. Há nesse caso, duas transições: do conto para o roteiro; do roteiro para o filme. É interessante apontar transformações, perceber deduções e acréscimos na adaptação que dão forma a cada linguagem. Colocar o roteiro do filme nessa equação pode ser um encaminhamento para a produção de outros roteiros pelos próprios alunos, em trabalhos posteriores, inclusive na produção de vídeos com acompanhamento pedagógico.

Como se trata de uma visão mais ampla de letramento, levando em conta a provável utilização de conceitos e fundamentos da área de linguagens, uma outra sugestão minha seria criar uma parceria com os professores e professoras de Língua Portuguesa, que poderiam usar o conto de Paulo Perdigão, assim como o roteiro base, como suporte de discussão em suas aulas. Nesse sentido, suponho também ser enriquecedor um trabalho conjunto com o componente curricular Geografia, já que, em “Barbosa”, assim como em “O dia em que o Brasil perdeu a copa”, há diversos elementos que podem ser trabalhados, como a questão do crescimento populacional.

Ademais, não posso esquecer de considerar que o filme é um gatilho mais que instigante para trabalhar a problemática da viagem no tempo em si, que tanto fascina a humanidade. Grandes clássicos do gênero ficção científica tratam do tema. Então, além do professor e professora de Português fazerem alusão a essas obras, a área de Ciências da Natureza pode aproveitar esse gatilho para mediar um debate sobre as possibilidade e impossibilidades à cerca de deslocamentos temporais. Embora trate mais especificamente da dimensão subjetiva do tempo, a viagem de Paulo pode abrir espaço para uma investigação sobre como lidamos com o tempo como grandeza física e como isso afeta a nossa vida.

Se for do interesse do professor de História, a quem esse texto se destina à princípio, ampliar ainda mais a proposta de trabalho, ele deve solicitar a ajuda dos professores de Sociologia e Filosofia. A problemática do tempo tem no filme um belo ponto de partida, em especial ao tratar da dinâmica entre o tempo cronológico e o tempo subjetivo. Na introdução do livro “Anatomia de uma derrota”, consta uma discussão sobre o tema, que pode servir de base para o professor. O mesmo texto descreve os costumes urbanos e faz uma caracterização social da época, o que ajudará o docente de Sociologia a analisar esse cenário, construído a partir da memória do autor, e compará-lo com as sociedades contemporâneas ao aluno.

Partindo daí, em Educação Física, a história do futebol pode ser aproveitada para desenvolver duas reflexões importantes: como o esporte reflete e influencia a sociedade, ajudando a criar laços de identidade e, de forma mais específica, a inserção social do negro através dele. Lembremos que nas primeiras décadas do século XX, o futebol era um atividade da elite branca. Em 1914, Carlos Alberto, jogador do fluminense, usou pó-de-arroz no rosto para disfarçar a cor de sua pele, o que dá a exata ideia da situação. Além de analisar a participação da população afrodescendente na trajetória do futebol e no esporte de uma maneira geral, é necessário ressaltar que o racismo nesse ambiente ainda não foi superado.

Os professores e professoras de Educação Física, em parceria com a Área de Ciências Humanas podem promover debates que comparem exemplos de racismo em tempos mais remotos e contemporaneamente. Não faltam casos ocorridos no esporte mundial que explicitam a urgência de se trabalhar esse assunto. Em especial porque o esporte é “vendido” como um fator social agregador. É o caso das Olimpíadas, cuja própria história, abre espaço para levar ao conhecimento dos alunos personagens como o norte-americano Jesse Owens, negro e o maior destaque dos jogos de Berlim, em 1936, que haviam sido planejados para expor ao mundo a superioridade da “raça ariana”.

Enfim, caso pense o uso desse filme como elemento desencadeador de um debate mais horizontal, quem sabe através de um projeto que reúna as várias áreas do conhecimento, as sugestões acima devem servir ao menos como pontos de instigância. Se não é esse o objetivo, tenho convicção que, mesmo assim, “Barbosa” é um instrumento fantástico como mediação pedagógica. Pontuei aqui alguns aspectos que podem ser utilizados por professores e professoras que trabalham com o audiovisual na sala de aula. Espero ter ajudado. Caso desejem acrescentar alguma coisa ao texto, outras sugestões, ou mesmo compartilhar uma experiência já realizada com o uso deste filme, entrem em contato, por e-mail ou usando a caixa de comentário. Agradeço de antemão. Até o próximo texto!

Dados do filme:
• Título: Barbosa
• Título original: Barbosa
• Direção: Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado
• Roteiro: Giba Assis Brasil, Ana Luiza Azevedo, Jorge Furtado e Paulo Perdigão. Baseado no conto "O dia em que o Brasil perdeu a Copa"
• Ano de lançamento nos cinemas: 1988.
• País de produção: Brasil.
• Duração: 12 minutos.
• Elenco principal: Antonio Fagundes, Pedro Santos, Victor Castel, Abel Borba e Ariel Nehring.

Sinopse: No final da década de 1980, Paulo, personagem central do enredo, inventa uma máquina do tempo com o intuito de voltar para o ano de 1950, precisamente no dia 16 de julho, data da derrota da seleção brasileira de futebol na final da copa do mundo. O objetivo da viagem é impedir que o fato aconteça, evitando o gol de virada do atacante Ghiggia, que resultou no famoso maracanazo.
Referência para citação:Barbosa. Direção: Ana Luiza Azevedo e Jorge Furtado. Produtora: Gisele Hiltl. Elenco: Antonio Fagundes, Pedro Santos, Victor Castel, Abel Borba e Ariel Nehring, entre outros. Roteiro: Giba Assis Brasil, Ana Luiza Azevedo, Jorge Furtado e Paulo Perdigão. País: Brasil. Ano de lançamento: 1988. Cor. Duração: 12 minutos.

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