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A mise-en-scène do tempo


Em uma longa fila, moradores de um povoado nos arredores da cidade de Cochabamba, na Bolívia, aguardam a chegada de uma equipe de filmagens que irá recrutar atores e figurantes para a produção de uma película sobre a colonização espanhola na América, evento fundante da modernidade europeia. Sobretudo, expor o contraponto entre a ação de Colombo e o papel que o frei Bartolomeu de las Casas desempenhou como voz opositora à escravização de indígenas. Esse primeiro contato entre europeus e nativos não começa bem, devido a decisão dos produtores de não testar todos que lá estavam aguardando, em virtude do tempo que isso tomaria. Após contornada a situação, a cena encerra com uma imagem que, de maneira impactante, une espaços e tempos: sobre suas cabeças, um helicóptero carrega um elemento cenográfico para o local de filmagem: uma imensa cruz de madeira.
 
Essa é a primeira sequência do filme “Conflito das águas”, dirigido pela espanhola Icíar Bollaín, com roteiro de Paul Laverty. Lançado comercialmente em 2010, aproveitou uma efeméride: os quinhentos anos do Sermão do advento, como é conhecido um famoso discurso do frei Antonio de Montesinos, que segundo relatos, teria convertido Las Casas, antes um integrante habitual da lógica colonizadora, encomendero inclusive. Ele, Montesinos e o próprio Colombo, cada um à sua maneira, e sob certo ponto de vista, inventaram o Novo Mundo, e com ele, os seres humanos que aqui já habitavam.
 

Assim, em 1511, cinco séculos antes do lançamento de “Conflito das águas”, Montesinos falava da brutalidade cometida contra os ameríndios, submetidos ao destino imposto pela empreitada colonial. “Todos vós estais em pecado mortal. Nele viveis e nele morrereis, devido à crueldade e tiranias que usais com estas gentes inocentes. Dizei-me, com que direito e baseados em que justiça, mantendes em tão cruel e horrível servidão os índios?” Essas foram algumas das palavras proferidas naquele 21 de dezembro. De uma pequena igreja na atual República Dominicana, essa mensagem ecoaria muito além dos ouvidos dos ali presentes, incluindo o frei Las Casas. Esse documento é um dos símbolos da resistência contra os massacres perpetrados pelos colonizadores e lembrado como evidência de posicionamentos dissonantes contra atos de desumanidade, cabendo essas palavras, infelizmente, em outros tempos e lugares. Embora consubstanciando o “encobrimento do outro”, o indígena, “pobre de tudo”, seria a passagem para a modernidade da Igreja, que inventa o ser que não tem religião. Portanto, do mesmo modo que seria integrado, deveria ser protegido. Ao presente, cabe produzir essa memória, tendo como marco fundador a fala de Montesinos.

Nos primeiros meses do ano 2000, momento em que se passa a ação do filme de Bollaín, Cochabamba, cidade há cerca de 400km de La paz, capital da Bolívia, viveu dias intensos. Sofrendo pressões internacionais para privatizar seu sistema de distribuição de água, o governo boliviano concedeu a um conjunto de empresas, incluindo o grupo americano Bechtel, através do Consórcio Aguas del Tunari, o direito de administrar o acesso da população ao recurso hídrico. Ao ser impedida de perfurar poços alternativos para o acesso à água e ver aumentar excessivamente o valor pago pelo seu uso, a população local desencadeou uma grave convulsão social. Esse episódio recebeu o nome de “Guerra da água”.

Para além dos registros feitos nos meios de comunicação no tempo em que os fatos ocorreram, esse evento veio à tona novamente nas manchetes internacionais justamente quando foi lançado o filme de Bollaín, ou seja, dez anos após a ação dos cochabambinos, e já no agravado contexto que tinha no tema da exploração da água, com ameaça de disputas potenciais em diversas regiões, o interesse dos países mais ricos. Estes consomem, para sustentar sua demanda de produção, um terço dos mananciais aquíferos de todo o mundo. A realização de “Conflito das águas” também queria tratar de seu próprio tempo, e o fez usando como referência dois outros eventos, separados por cinco séculos, mas relacionados diacronicamente através de uma narração.

Devido ao jogo de espelhos narrativos e rimas visuais que se desenrolam ao longo da projeção, em “Conflito das águas” não se pode dizer que o enredo trate principalmente de um ou de outro evento, mas do tempo. É a maneira como o movimento da história, suas permanências e mudanças, são apresentadas, e sobretudo, como a representação dessas categorias de tempo são percebidas pelos personagens e propostas ao espectador, que faz da obra um ensaio sobre a materialização do tempo na narrativa. Bollaín e Laverty não fizeram um relato sobre a colonização espanhola em terras americanas; nem se aprofundaram na escalada macroeconômica que explica a origem do recente conflito na Bolívia. O que fazem, através de seu cinema, é tentar enxergar a história como um amálgama de vários estratos, onde o passado e o presente estão relacionados pelos caracteres de permanência, em suas repetibilidades e transcendências; assim como em sua singularidade. O discurso do frei Montesinos, quinhentos anos antes do lançamento do filme, inspirou a sua produção, inclusive se faz uma alusão indireta a isso em uma cena, mas ele mesmo é evocado em função de um presente que fala ao passado, que o encontra, num distanciamento que permite compreender-se.

A construção de uma narrativa que faz a justaposição de tempos distintos tem nesse filme uma demonstração de como a arte cinematográfica é um instrumento eficaz para representar, em um discurso narrativo, a passagem do tempo. Bem como sua configuração enquanto experiência histórica. A maneira como os fatos relativos a colonização espanhola e a mais recente “Guerra da água” são associados, não poderia ter sido criado no teatro ou na literatura, pois a visualização das situações dadas pela montagem das cenas, alternando e sobrepondo elementos sincrônicos e assincrônicos, provoca no espectador uma sensação de que a história está aparentemente se repetindo. No entanto, diversos outros elementos apresentados no roteiro reforçam a singularização dos acontecimentos mais recentes, evidenciando que o passado não passou, mas também não é o mesmo.

Em resumo, “Conflito das águas” (cujo título original é “también la Iluvia”) narra a tentativa de se realizar um outro filme, que como já foi mencionado, tem como tema a colonização espanhola, e mais especificamente os eventos relativos a segunda viagem de Colombo. Sendo assim, trata-se de um filme dentro de outro filme. Mas o que deixa sua narrativa interessante, como ficção histórica, é que ele acaba por abordar também outro episódio muito significativo do passado recente da Bolívia: a chamada Guerra da água de Cochabamba, que explode justamente no momento em que se dá o início dos trabalhos da equipe de filmagem. Fica evidenciado logo em suas primeiras cenas, que o objetivo da película é enfrentar o desafio de estabelecer uma cadeia de relações entre a narrativa da diegese intrínseca ao filme que está sendo rodado, as reflexões sobre os episódios tratados nessa filmagem, como também os eventos contemporâneas ao trabalho dos produtores. Lembrando que o filme de Bollaín foi feito uma década depois dos fatos nele narrados, o que por sua vez constitui um discurso à respeito deles. Portanto, além de ser uma reflexão sobre a relação entre passado e presente, permite se pensar sobre sua representação.

Levando em consideração sua função de metalinguagem, pois é um filme sobre a realização de outro, esse efeito é reforçado pela interação entre os dois acontecimentos históricos nele trabalhados: a colonização na virada do século XV para o XVI e o conflito em razão da privatização da água, no ano 2000. A constituição de sua narrativa, a partir da representação desses dois eventos, propõe uma complexa dinâmica de raciocínio histórico: presente-passado-presente. A diegese é um elemento que suscita essa percepção, já que em si, ela é uma representação da passagem de um tempo a outro. No caso desse filme, temos a duplicação desse efeito, pois um enredo espelha o sentido daquilo que ele mesmo representa a priori.

Além das várias situações em que os duplos personagens (atores que interpretam atores) estabelecem arcos temporais entre passado e presente, o que se espelha aqui, portanto, é o sentido que o narrador atribui à representação do tempo a partir dessas categorias, que serão refiguradas pelo espectador. O ouro agora é a água, os espanhóis são o conglomerado de multinacionais que administram seu acesso, a cruz chega pelos ares, e não mais pelos mares. Metaforicamente, vem em um helicóptero, não mais em um navio; e ninguém será escravizado, pois ganharão dois dólares ao dia de trabalho. São os efeitos de um mundo transformado, atualizado. Mas será também singularizado?

No filme, passado e presente vão aos poucos se aproximando, ou a cortina do distanciamento cronológico vai sendo aos poucos aberta. A equipe de filmagem escolhe a Bolívia porque as condições logísticas facilitam a produção: população pobre, elenco mais barato, por exemplo. Mas, na verdade, os fatos narrados não se passaram naquele território. Colombo aportou nas Antilhas caribenhas e no Golfo do México, o que gera uma discussão sobre a veracidade dos fatos mostrados. O personagem Costa (Luis Tosar), logo retruca dizendo se tratar de índios, que “são todos a mesma coisa.” Esse é um elemento de permanência, uma mentalidade que resiste. Ao mesmo tempo que é singular o fato de o personagem relacionar o seu presente ao passado. Cada presente ressignifica a experiência acumulada, mesmo quando aparentemente a mantenha, pois em sua frase, Costa não só afirma algo, ele reafirma.

Voltando a cena da fila para seleção do elenco, os produtores, seguindo a opinião de Sebastian (Gael Garcia Bernal), fazem a opção por Daniel (Juan Carlos Aduviri), aquele que se mostra mais indignado com o desinteresse pela longa espera a que foram submetidos. Ele se revolta quando fica sabendo que não vão (como havia sido anunciado) testar todos os candidatos. À princípio, Daniel estava lá porque sua filha queria fazer parte do elenco. Mas, além dela, os produtores acabam o selecionando também. Sebastián percebe na escolha de Daniel uma oportunidade de cooptação, já que eles se apropriam de sua liderança e evitam que outras pessoas possam dificultar suas ações. É Daniel que servirá de ponte entre os produtores e os atores locais, entre os espanhóis e os cochabambinos, entre o ouro e a água, entre o passado e o presente. A partir de inúmeras situações do roteiro, ele é, narrativamente falando, o eixo sobre o qual a intriga irá se desenvolver, permitindo o encontro dos tempos que permeiam a obra.
 

Outro arco que possibilita a narrativa estabelecer esse vínculo entre passado e presente são as reflexões produzidas pelos atores sobre os personagens por eles representados, o que fica evidenciado na cena em que Anton (o ator que interpreta Colombo) está ensaiando. Sua fala corresponde, ipsi literis, a um trecho de uma das cartas enviadas pelo personagem a Espanha. Ele diz entender que o roteirista quer ser fiel ao documento, mas que desejava mostrar o lado humano de Colombo, “o homem com suas dúvidas”. É interessante porque o que o roteiro faz é mostrar ao espectador o motivo da história ser constantemente reescrita, já que busca explorar novas dimensões dos fatos e de seus personagens. Sendo que, tal mudança de prisma daria origem a outra narrativa. Essa é outra forma de evidenciar de que maneira o presente se relaciona com o passado, quando propõe uma nova representação.

Ao recitar a carta de colombo, como uma fala direta ao espectador, ouve-se sobre os nativos: “São tão ingênuos com o que tem, que nunca negam nada.” E “eu ainda não descobri se eles tem propriedade privada”. Nesse caso, o espectador é remetido para a situação dos figurantes, que estão ganhando muito pouco para participar do filme. Sabemos disso, pois Costa, na cena seguinte, conversa com um investidor ao telefone e diz: “Em Cochabamba, há milhões de índios famintos”. Acrescenta que só estão pagando dois dólares por dia, e “eles estão rindo à toa.”

De certa maneira, esse é outro aspecto interessante: a própria equipe de filmagem não percebe essa relação, e demora a entender (se é que entendem) que o tema que estão tratando guarda muita semelhança com o que vivem os cochabambinos. Em um dos registros para o making of, Sarah (responsável pelo documentário) pergunta: - Daniel, pode me dizer o que te levou a fazer esse filme? - Como assim? – pergunta Daniel. - Do que mais você gostou na sua personagem? Talvez o que representa na sua resistência indígena, ou mostra a colonização de um ângulo diferente? Um colega de Daniel (estão em um grupo cavando uma vala para o transporte de água) interrompe e responde por ele: - Ele só quer o dinheiro e nada mais!

Esse diálogo mostra que o documentário, além do filme que está sendo realizado, constitui-se tão somente num discurso sobre a colonização sob a ótica eurocêntrica, sem levar em consideração o que realmente pensam os habitantes locais, de que maneira se relacionam com o seu passado, como o representam. Pressupõem a simples atualidade daquilo que querem mostrar no filme, como se o making of aludisse a simples continuação daquele passado. Como se um sentimento de recusa ao colonizador fosse algo inerente e orgânico ao povo local. Isso, é claro, corroboraria a ideia de atualidade das questões mostradas no filme. Ao dizer que eles queriam o dinheiro, o morador cochabambino desconcerta a diretora, que para de filmar. Talvez a fazendo perceber que aquela imensa fila para testes não fosse um desejo dos moradores de participarem de um ato contra a colonização ou o imperialismo. Eles “só queriam o dinheiro”. Ou precisavam dele.

Temos essencialmente um exemplo de colonialidade do saber, na medida em que através do filme, os espanhóis oferecessem aos bolivianos uma maneira de expor sua vitimização, um canal para vincular o seu lugar de colonizados no mundo; e um egocentrismo, se forem levadas em consideração as condições em que se dá tanto a ação quanto a escrita da história. São eles, os europeus, que trazem tanto a desgraça, quanto a salvação da alma, e agora apresentam aos “índios” o seu lugar de fala. Embora queiram impor o que será dito em relação ao seu passado. Mesmo que exponha o lado “negativo” dos feitos de Colombo, a película compensaria esse mal como a missão salvadora de Montesinos e Las Casas. Trouxeram a doença e sua cura, a espada e a cruz. Protagonizar as ações de Las Casas é ressaltar a cruz diante da espada, e mais uma vez do colonizador.

O próprio discurso da resistência, portanto, é uma tentativa de vinculação com outro tempo, uma evocação. Um esforço para localizar uma ação numa temporalidade. Racionalizando e humanizando o tempo. Entretanto, havia uma resistência dos moradores contra o consórcio das águas e a prefeitura de Cochabamba, que não estava sendo percebida pela realizadora do making of, pois a ela bastava evocar uma ancestralidade que deveria permanecer na consciência dos colonizados. Ou seja, Sarah não fazia uma investigação, mas sim, uma representação do que já antecipadamente estabeleceu. Isso desencadeia também um debate em torno dessas opiniões, assim como também se estabeleça uma metáfora em relação ao próprio trabalho do historiador e da subjetividade envolvida na produção de uma narrativa.

Posteriormente a própria Sarah, mesmo sem relacionar passado e presente, percebe a relevância do que está para acontecer em Cochabamba e pede autorização a Costa para registrar o fato, pois seria uma fonte primária sobre os eventos. O pedido é negado prontamente. Sendo ela fortemente desencorajada pela produção do filme, que não quer se envolver naqueles fatos. Mas, curiosamente, quer tratar de acontecimentos muito semelhantes ocorridos em um passado remoto, que supostamente não teria mais reverberação política para eles, ou que não pudesse trazer mais nenhuma complicação para as suas vidas.

014
Com a explosão das manifestações, os produtores começam a ter sérios problemas com Daniel/Hatuey. Este vai se tornar o enfrentante das mobilizações contra a empresa que administra os recursos hídricos. Como precisam dele para terminar as filmagens, já que a revolta dos índios contra os espanhóis também é liderada por Daniel/Hatuey, verdade e ficção são confundidos dentro da diegese. Esse personagem é o elo narrativo da história, e das várias temporalidades nela vistas. Em especial, se for considerado que o próprio ator que vive o personagem não era um profissional na época, e que de certa forma viveu um processo parecido para fazer parte do filme de Bollaín. Isso reforça seu papel como vínculo entre o filme e o espectador, seu fator de empatia histórica. É através de Daniel/Hatuey que a plateia percorre os tempos e espaços sugeridos no filme, personificando continuidades e descontinuidades da história.
O uso de “Conflito das águas” para se pensar o tempo, pode levar a percepção de que há na relação entre passado e presente algumas premissas a se considerar: conflitos, disputas orientadas pelo acesso a bens de sobrevivência são recorrentes na história, e até mesmo resultados de repetições no que se refere a estrutura de poder em países mais pobres, mas as razões que muitas vezes motivam esses conflitos guardam especificidades. São, portanto, características do presente, sintomas de singularidade. Diante de certas pressões socias, de exploração ou subjugação, explodem atos de resistência, e essa dinâmica social pode ser interpretada como uma transcendência (uma certa permanência na história latino-americana). Mas é preciso pesar seus elementos sincrônicos.
 

A radicalização do movimento de contestação ao consórcio das águas, corresponde a uma percepção dos atores sobre a relação entre esse conflito e os eventos filmados referentes a colonização. Anton, que vive Colombo, deixa transparecer uma certa hipocrisia dos que dizem denunciar a exploração colonizadora e não se sensibilizam com o que estão vendo no presente. Mas não porque em tese, seriam a mesma coisa, nem o filme quer reforçar a ideia de um mito de origem. Ele pretende, na verdade, propor uma reflexão sobre a necessidade de se enxergar uma temporalidade maior, para que se perceba que os problemas enfrentados pela população de Cochabamba, por mais que se resguarde a singularidade dos eventos, está encaixado num universo mais amplo, numa estrutura de dominação.

O que se enxerga a partir daquilo que os personagens verbalizam é também uma análise comparativa. Pois as atitudes das autoridades locais diante do prejuízo das pessoas reforça uma subserviência aos atos imperiais e exploratórios numa espécie de colonização moderna, apresentando a singularidade de não mais recorrer a nomenclaturas antigas. Não se fala mais em metrópole e colônia, ou em pacto colonial. Mas pressupõe a existência de um aparelhamento de exploração de recursos para a geração, in loco, dos lucros que serão remetidos, e dos prejuízos, que serão socializados. Não há como carregar toda a água, como se pretendia fazer com o ouro. Mesmo parecendo certo determinismo, o filme procura representar essas comparações a fim de estimular o jogo de percepções sobre alteridade/permanência. Para isso, estabelece-se uma rede de metalinguagens. Não só o espectador analisa o filme e a história que ele representa. Os personagens analisam o filme que eles estão fazendo e a história que está sendo retratada nele. E todos, personagens, atores e espectadores pensam a realidade, estabelecendo um entroncamento de perspectivas temporais.

A imagem também é ou faz parte de um discurso, é interessada, enuncia uma ideia. O fato do filme ser rodado na Bolívia, que como já foi dito aqui, não era o local onde os eventos reais teriam acontecido, justifica-se como adequação às metas de orçamento, a uma otimização de custos, portanto. Mas o filme “Conflito das águas” é feito na Bolívia porque o desejo era falar sobre a Guerra da água em Cochabamba, um episódio da história recente que serviria para reforçar o efeito comparativo com a exploração colonizadora. Um gatilho narrativo, por assim dizer. Sobre o que o filme fala principalmente? Ele é um discurso sobre a relação entre passado, presente e futuro. Mas enquanto fato em si, a película pode ser compreendida em uma outra dimensão, nesse caso, política. Pode-se fazer alusão a colonização espanhola, para na verdade criticar a “colonização” neoliberal que pretende usufruir dos mananciais de água da Bolívia. Quem sabe uma crítica aos Estados Unidos, que estariam no presente, repetindo as ações espanholas de 500 anos atrás.

No que se refere a esse prisma, outro momento bem interessante é quando os produtores são recebidos pela prefeitura de Cochabamba. Na ocasião, eles questionam a convulsão social a que estão assistindo, apesar de que sua preocupação é preponderantemente com o término das filmagens. Temem que Daniel sofra alguma coisa e prejudique a continuidade das cenas. O prefeito admite que os índios foram massacrados e enganados, por isso, segundo ele, os nativos “trazem a desconfiança nos genes”. Ainda assim, diz que está tudo tranquilo, demonstrando que não acredita na possibilidade de que a mobilização dos índios (como são sempre chamados os cidadãos cochabambinos identificados com o “atraso”) resulte em algo efetivo. Como se eles nunca tivessem conseguido mudar os rumos da história. Questionado sobre os aumentos abusivos do preço da água, o prefeito diz que é necessário que existam empresas para explorá-la porque não há recursos no país para fazer isso. Afirma ainda que a ação dos “índios” é o discurso da vitimização contra a modernidade. Aproveita para lembrar aos visitantes espanhóis, ironicamente, o quanto pagam aos figurantes. E completa dizendo que se ceder aos manifestantes, eles irão fazer a cidade voltar a idade da pedra. Remetendo a suposta condição dos indígenas no início da colonização europeia. Contrapõe-se atraso e modernidade tomando como parâmetro a atitude dos cochabambinos.

Ainda sobre a fala do prefeito, é emblemática a mensagem “não temos recursos para explorá-la”. Nesse caso, a água simboliza a oposição entre a colonialidade e as formas de pensamento que a logocentria ocidental-europeia deseja impor. Para as empresas que administram o negócio da água, a natureza é nada além de matéria-prima para ser transformada em lucro. E isso justifica o investimento para a sua extração abundante. Para os índios, a pachamana é o todo integrado. Portanto, sendo eles próprios parte dela. A natureza não é algo externo a eles. Por isso, Daniel vai dizer a Costa, “Água é vida. Você não entende”. Essas duas frases combinadas, resumem as diferenças elementares entre duas mentalidades, dois logos que convivem espaço-temporalmente e que determinam a relação entre modernidade e colonialidade.

Quando a situação social se torna caótica em Cochabamba, Sebastián diz que eles não devem se engajar a ponto de prejudicar o filme, porque todo aquele conflito vai ser esquecido, mas o filme que eles estão fazendo é que será lembrado. O que é interessante para ser visto enquanto produto simbólico, como é o caso também de um texto historiográfico, algo que vai ecoar na eternidade, e que é mais significativo do que o fato em si, que vai ser lembrado a partir do momento em que se escreve sobre ele. Nesse caso, o que vai fazer parte do espaço de experiência é a narrativa e não os acontecimentos e seus personagens, mas a sua representação. É um espaço de experiência que está sendo projetado ao futuro, um discurso tipo cápsula do tempo, em que não se tenta prever o que vai acontecer, mas se pretende produzir um documento que realize a crítica que o futuro precisará conhecer sobre o que historicamente aconteceu.

O filme procura dar um sentido de realidade para o espectador em relação as filmagens que os produtores estão realizando, pois não aparecem as câmeras na maioria das vezes. Nesse tipo de obra, em que se filma um set, é comum o contrário. Faz-se justamente questão de mostrar a produção para ressaltar o efeito de metalinguagem, mas isso não acontece aqui. O que certamente aumenta a sensação de metáfora, pois a alternância do que aconteceu no passado e do que está acontecendo naquele momento na Bolívia fica mais explícito. É como se estabelecesse uma montagem paralela, mas de momentos diferentes na história. Dando a entender, inclusive, que os nativos nas cenas passadas no século XVI não estavam representando. Na última sequência filmada, Hatuey e outros índios que se insurgiram contra os espanhóis são queimados. E a polícia espera terminar a ação para prender Daniel por causa das manifestações, onde provavelmente seria morto. Dois silenciamentos, dois tempos. Na “cena real”, Daniel consegue escapar.
 

Ao final, a maior das singularidades: os habitantes de Cochabamba vencem a disputa. Poder-se-ia inferir que se trata de uma revanche, ou do alvorecer de uma nova era nas relações sociais. O descortinar de um novo tempo. Numa possível metáfora, o povo cochabambino fez ecoar para o mundo uma mensagem, que talvez a diretora Íciar Bollaín e o roteirista Paul Laverty entendessem reforçar a pregação proferida por Montesinos: “ouçais; a qual será a maior nova que jamais ouvistes, a mais áspera e dura, a mais espantosa e perigosa que jamais imaginastes ouvir". Mas em 2010, quando foi lançado o filme, e mesmo em 2019, sabe-se que a superação do passado colonial não foi alcançada.

Em uma outra sequência do filme, no ensaio para a cena do famoso sermão, o padre Montesinos diz: “Estão morrendo por nossa culpa, ou melhor, vocês os matam. Como podem ser tão negligentes? Como podem viver nesse sono letárgico?”. A cena seguinte mostra Daniel discursando perante uma plateia de manifestantes, lembrando que querem tirar deles “até a chuva que cai nas nossas cabeças”. Lembra também que os donos da empresa que administram a água sequer moram próximos a ela, e pergunta: “o que mais vão querer? O ar que respiramos?

Como é sugerido no filme, o personagem Daniel trabalhou nos Estados Unidos, onde no contexto em que a fala é inserida, permite-se inferir a ideia de que sua consciência da condição de explorado e a compreensão dos fundamentos do mundo do capital teria se formado. Assim sendo, ele não precisaria estar aludindo a um passado distante para que pudesse reagir contra a privatização da água, embora a montagem do filme o faça. Entretanto, através de Daniel vemos que esses elementos que demonstram a permanência da exploração do trabalho e dos recursos naturais se apresentam não só em outros tempos, mas sincronicamente, em outros espaços.

O filme “Conflito das águas” produz uma reflexão histórica porque, para além dos elementos sincrônicos que ressaltam o intercâmbio espacial das forças produtivas, ele invade o território da percepção dessa problemática sob a égide da ação do tempo. Mesmo que aluda a relação entre o local e o global neste filme também, fundamentalmente é um ensaio sobre o presente e o passado, embora não se trate apenas de um só passado.

Os acontecimentos do ano 2000 em Cochabamba impressionam. É espantoso reconhecer que, especialmente quando se desloca a perspectiva histórica para um processo que se estende muito além daqueles meses, uma pequena população de “índios” tenham impedido a continuidade de um sistema de privatizações, tendo na Bolívia daquele período um balão de ensaio para o que iria ocorrer em outros países da América Latina. Seria o conjunto daqueles eventos, metaforicamente, uma voz solitária no deserto ou verdadeiramente uma oportunidade de se pensar de que maneira se pode superar a colonialidade?
 

De volta ao início mais uma vez, no momento da escolha dos atores, em que produtores e “índios” se conhecem, temos uma reprodução do tão propagado encontro entre dois mundos. Os espanhóis, em busca de elementos para compor sua mise-em- scène, defrontam-se com o outro. A fim de reproduzir aquele contato acontecido há 500 anos, os cochabambinos deveriam ser a versão mais próxima possível daqueles nativos avistados por Colombo. Ao ouvir de Daniel que eles teriam que testar todos os que estavam na fila, começaram a perceber que os tempos, assim como as pessoas e os lugares, mudam.

Ao final da história, “Conflito das águas” apresenta um último diálogo entre o “índio” e o “europeu”:

- O que vai fazer? – pergunta Costa.

- Sobreviver. – responde Daniel. E acrescenta:

- É o que sabemos fazer melhor.

Ao se despedirem, Daniel oferece um presente a Costa: um pequeno frasco com água (yaku). O olhar do produtor para o objeto denuncia a assimilação de um valor não antes por ele reconhecido. Naquele pequeno recipiente com água, estava também uma parte de Daniel e de cada um daqueles que resistiram e que resistem. Lutar pela água é lutar por si mesmo.




Na sala de aula:

Caro colega professor, creio que as descrições feitas nesta resenha já abarcam inúmeras possibilidades de reflexão com os alunos. Mas é importante sempre salientar que o objetivo não é usar o filme para ilustrar os conteúdos. Os eventos acontecidos em 2000 na Bolívia e aludidos no roteiro, não serão compreendidos em sua real complexidade apenas a partir dessa obra, muito menos ela se prestaria a ser uma explicação do que foram os séculos de colonização europeia no continente americano. O que precisa ficar claro para nós é que, neste caso, temos uma oportunidade de traçar um arco entre passado e presente e refletirmos sobre as alteridades e permanências na História.

Seria interessante elaborar algumas perguntas para instigar uma problematização desses aspectos. Nas vezes em que usei esse filme como meio para suscitar uma reflexão sobre a narrativa histórica, bem como oportunizar uma apropriação das noções de tempo e sua representação, foi assim que procedi. Pois minha preocupação é direcionada para uma reeducação do olhar dos alunos, estimulá-los a perceber as relações que existem e que estabelecemos entre os tempos. Na expectativa, obviamente, de que isso possa desenvolver neles a competência de pensar historicamente.

Como este é um dos filmes que usei recentemente na pesquisa do mestrado, consta na aba CineHistória, uma pequena descrição das atividades desenvolvidas a partir do filme, com as principais perguntas que nortearam nosso debate, caso vocês queiram dar uma conferida. Pode ser um ponto de partida para uma possível adaptação que atenda a demanda dos vossos alunos. Até o próximo texto!

Conflito das águas


Dados do filme:
• Título: Conflito das águas
• Título original: También la iluvia
• Direção: Icíar Bollaín
• Roteiro: Paul Laverty
• Ano de lançamento nos cinemas: 2011
• Países: Espanha, México e França
• Duração: 103 min.
• Elenco principal: Luis Tosar (Costa), Gael García Bernal (Sebastián), Juan Carlos Aduviri (Daniel/Hatuey), Karra Elejaude (Antón/Colombo), Raúl Arévalo (Juan/Montesinos), Carlos Santos (Alberto/Las Casas), Cassandra Ciangherotti (María).

Sinopse: Uma equipe de filmagens vinda da Espanha chega a Cochabamba, na Bolívia, para realizar um filme sobre o período da colonização, em especial, o conflito entre Colombo e os padres da Companhia de Jesus, interessados na catequização dos índios. No meio do processo de filmagens, o drama dos moradores da periferia da cidade com dificuldades do acesso a água acaba por promover uma convulsão social que mergulha a todos no furacão da história. Presente e passado se “encontram” entre um filme e outro.

Referência para citação: Conflito das águas. Direção: Icíar Bollaín. Produtores: Juan Gordon e Eric Altmayer. Elenco: Luis Tosar, Gael García Bernal, Juan Carlos Aduviri, Karra Elejaude, Raúl Arévalo, Carlos Santos, Cassandra Ciangherotti, entre outros. Roteiro: Paul Laverty. Título Original: También la iluvia. Espanha, México e França. Ano de lançamento: 2011. Cor. Duração: 103 min.




Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_de_Montesinos. Acesso em 26 de janeiro de 2019. Em quíchua, numa tradução literal em um sentido formado historicamente, “mãe terra”. Originalmente relacionava-se com o culto ao tempo. É associado também a ideia de fertilidade.
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