Conflito das águas
janeiro 7, 2020
Os primeiros passos do projeto Planejando com cinema
janeiro 7, 2020
 

Cinema e aprendizagem histórica na Educação de Jovens e Adultos


Embora tenha como objetivo promover uma reflexão sobre as possibilidades de utilização do cinema como forma de construir uma compreensão do tempo, bem como permitir ao aluno a apropriação das categorias temporais, pretendo aproveitar o site para divulgar experiências práticas em sala de aula. Aliás, o nome desta seção alude a um projeto que desenvolvi por dez anos em duas instituições escolares. Sendo assim, antes de propriamente publicar as atividades voltadas para a atual finalidade do uso que faço dos filmes no que se refere a aprendizagem histórica, sinto a necessidade de produzir um breve apanhado à respeito de como foi se desenvolvendo essa pesquisa, que começou verdadeiramente no chão da escola.
 

O conteúdo dessas primeiras publicações, em certa medida, servirá também para que eu possa evidenciar como, ao longo do percurso, fui formatando a abordagem didático-pedagógico que me conduziu ao desejo de fazer uso do filme para o desenvolvimento do raciocínio histórico dos alunos. Porém, isso se deu gradualmente. Uma verdadeira reflexão durante a prática ajudou a configurar as atuais feições da utilização que faço do cinema na atividade docente. Portanto, essa pesquisa é feita de alteridades e permanências, na medida em que alguns objetivos perduram desde o começo. Contudo, aprimorados pela experiência. E como o projeto CineHistória começou no Centro de Educação de Jovens e Adultos Joaquim Gomes Basílio, é por ele que início o resumo dessa trajetória, que acabou por conduzir a minha pesquisa de mestrado.

Mesmo já procurando trabalhar com o cinema desde os primeiros anos, quando passei a lecionar na EJA, confesso que tive dificuldades para imaginar de que maneira eu poderia abordar o uso de filmes. Dessa forma, a porta de entrada foi o projeto Revisão de estudos, que consistia de fato em um cursinho pré-vestibular para os alunos que haviam concluído o Ensino Médio em escolas da rede pública. E tudo começou de maneira bem simples, ainda sem uma visão muito sofisticada do que poderia resultar dessa dinâmica. Exibíamos “filmes históricos” às sextas-feiras com o intuito de promover uma discussão sobre as temáticas recorrentes nos programas de conteúdos para os vestibulares. Ao final, após da apresentação do filme, fazíamos um debate e eu aplicava uma bateria de atividades sobre o tema.

 

Embora pareça ainda muito incipiente mesmo, vendo agora em perspectiva, percebo que lá atrás já constava o embrião de muita coisa que depois passou a ser o norte das minhas preocupações. Desde o começo, intencionei evidenciar a questão da narratividade, incentivando os alunos a perceberem como existem várias maneiras de representar um acontecimento, pessoa ou tempo, e que essas várias representações ajudam a compor uma cultura história, que vamos assimilando através do aparelho midiático, do qual o cinema faz parte.

Ao exibir filmes como Cruzada, Tempos modernos ou Gladiador, sempre tive a preocupação em mostrar como essas obras poderiam nos permitir não só “visualizar” o passado que era neles aludido, mas instigar os alunos a enxergar os vínculos com o tempo que os produziu. Em “Cruzada” poderíamos ler tanto a retratação das lutas entre cristãos e muçulmanos na Idade Média, como as recentes rivalidades entre o mundo árabe e o ocidente, potencializados após os ataques ao World Trade Center de 2001. Em “Gladiador”, poderíamos perceber muito além das lutas sangrentas nos coliseus do império romano, mas, sobretudo, o novo fetiche pela barbárie das lutas de MMA transmitidas pelas TVs a cabo. Ou seja, a ideia de que o filme nos permitisse operar a relação entre passado, presente e futuro, já nascia junto com o CineHistória.

 

Outro aspecto que o trabalho com esse público ajudou na formatação do projeto foi o fato de termos a preocupação de trazer para a discussão temas da atualidade, pois esse é um elemento fundamental para quem está se preparando para ENEM e/ou vestibulares. Isso nos “forçou” a trabalhar com filmes que apresentavam uma história do tempo presente, e contribuiu para que reflexões históricas pudessem ser também produzidas a partir de uma obra que não necessariamente apresentava um conteúdo dito histórico, incentivando-nos a investigar uma historicidade nesse processo. Cito como exemplo a temática dos problemas ambientais, que nos permitiu construir uma reflexão em torno da história do desmatamento, e como isso se relacionava a fenômenos como a Revolução industrial.

Essa dinâmica aos poucos foi incorporando os alunos da modalidade EJA presencial que estavam cursando a etapa final do Ensino Médio, pois como o objetivo era reforçar o conteúdo para as provas do ENEM/vestibulares, aqueles que tinham essa pretensão começaram a frequentar as sessões. Esse acabou sendo o “pulo do gato” do projeto, já que houve a extinção do programa Revisão de Estudos. Dessa forma, demos continuidade ao CineHistória exatamente com a modalidade a que a escola por natureza se destina: a Educação de Jovens e Adultos. Entretanto, era preciso reconfigurar a abordagem, pois naquela época, não havia um percentual tão relevante de alunos que se preparavam para avaliações classificatórias.

Começou a partir daí uma importante parceria com os demais professores da EJA, enfatizando o caráter coletivo do projeto. A questão que se impunha naquele momento era pensar uma seleção de conteúdos que achássemos essenciais, e nos quais os alunos apresentassem alguma dificuldade de assimilação. Isto posto, pensaríamos em uma maneira de usar os filmes como forma de provocar o interesse deles pelo estudo desses conteúdos. Nesse caso, a partir da apresentação dos filmes, eram cobradas atividades de investigação sobre aquilo que os alunos tinham visto na tela. Pesquisariam os personagens, os eventos e os sentidos produzidos pela obra. Procurávamos problematizar esse debate a partir das informações que os livros apresentavam. Assim, eles podiam partir dos filmes, mas teriam o apoio do material didático como suporte de aprendizagem, já possuindo o “incentivo” das imagens.

Considero até hoje essa dinâmica bem satisfatória, se levarmos em conta que tudo isso nascia gradualmente, conforme nossas preocupações iam ao encontro da demanda por instigar um aprendizado que fugisse da simples memorização dos conteúdos, coisa que os alunos da EJA já tinham vivenciado na sua trajetória educacional anterior. Sempre foi uma inquietação minha em particular, refletir sobre como é estratégico o ensino na modalidade de Jovens e Adultos, pois muito provavelmente eles terão a última chance de estudar conteúdos de História em uma sala de aula. É fundamental que esse conhecimento não seja por eles visto como coisas do passado apenas. Foi com isso em mente, que dei prosseguimento ao projeto.

Com o passar dos anos, o CineHistória foi crescendo e já envolvia todas as salas de aula da EJA, quando demos um salto decisivo: a criação do Planejando com cinema, que aliás, tem um espaço específico aqui no site e convido a todos a dar uma lida nos textos para entender mais sobre esse projeto. Como todos os professores das salas presenciais estavam participando do CineHistória, resolvemos planejar nossas atividades à longo prazo. Para isso, desde a semana pedagógica, na abertura do ano letivo, estabelecíamos temas que seriam trabalhados no intuito de contemplar os conteúdos de História, além de abordar discussões referentes a Filosofia e Sociologia do Ensino Médio. Definidos os temas, pensávamos também nas dinâmicas que pudessem ser desenvolvidas de forma paralela a exibição dos filmes.
 

Assim, cada tema acarretava um processo de ensino-aprendizagem que culminava em uma série de outros eventos. Em temáticas como “Consciência Negra: de ontem e de hoje”, realizamos palestras e apresentações diversas, além da exibição e debate sobre os filmes. Ressalto também que nem só docentes de Ciências Humanas participavam, pois o CineHistória contava com a ajuda dos professores de outras áreas, como em oficinas de produção de texto, que eram pautadas pelas temáticas que trabalhávamos com os alunos a partir dos filmes. Destaco igualmente a importância do esforço da gestão da escola, que nos apoiou desde o começo da empreitada.

Conforme nosso trabalho evoluiu, a prática foi me fazendo perceber que o uso dos filmes em sala de aula proporcionava um efeito mais significativo quando não estava necessariamente atrelado a um conteúdo especificamente, mas quando ele nos ajudava a pensar, ou dito de outra forma, a pensar historicamente. Esse insight foi decisivo para o futuro da minha pesquisa, e mal sabia eu naquele momento, também para o próprio futuro do projeto História e Cinema, nosso CineHistória.

Isso porque os Centros de Educação de Jovens e Adultos no Estado do Ceará passaram a atender exclusivamente a modalidade semipresencial, que até aquele momento não era o público atendido em nosso trabalho, mais por uma questão de praticidade que qualquer outra coisa. Como não estavam todos os dias na escola, e a frequentarem na maioria das vezes apenas para resolverem as avaliações, optamos por focar nos alunos da modalidade presencial. Assim como anteriormente, o que parecia ser uma dificuldade, mostrou-se a chance de evoluirmos mais um degrau. Mas como foi importante ter pisado firme alguns passos atrás!

Digo isso porque o semipresencial oferece uma dificuldade a mais, além do fato dos alunos não estarem todos os dias na escola: estão estudando conteúdos diferentes. Ao contrário das salas presenciais, em que o professor determina os conteúdos que todos os alunos estarão lendo, no semipresencial os alunos escolhem a matéria e determinam o ritmo de estudos. Foi aí que reforcei uma impressão que eu já havia tido: não focar em temas específicos, mas na competência de pensar historicamente. Procurar escolher filmes e abordagens que ajudassem no desenvolvimento do raciocínio histórico, para depois, proporcionar a eles a possibilidade de entender melhor os conteúdos.

Na modalidade semipresencial, além da realização das provas, os alunos precisam preencher os 20% de carga-horária presencial com atividades diversas. No caso da escola em que trabalho, propusemos a criação de oficinas temáticas, o que ofereceu a oportunidade de abordarmos assuntos que possam contribuir para o aprendizado dos objetos de conhecimento, já que os mesmos são organizados por temas geradores no próprio material didático. Ao realizarmos oficinas cujo eixo de discussão girava em torno do conceito de Cidadania, por exemplo, a preocupação é que os alunos percebam a historicidade do tema, observem como essa questão perpassa os conteúdos, e que o presente e o futuro em que vivemos será sempre permeado por passados que vamos constantemente ressignificando.

Esse era um aspecto que sempre me chamou a atenção da modalidade semipresencial, pois os alunos apresentavam muitas dificuldades de relacionar passado e presente, principalmente a partir das categorias de alteridade e permanências. Foi aí que percebi como isso precisava ser trabalhado. Nascia, mais uma vez, da necessidade e da oportunidade, a nova missão do projeto CineHistória. A ideia foi usar as oficinas de cumprimento da carga-horária presencial para ajudar os alunos a operar as categorias temporais na aprendizagem história, o que passa pela própria compreensão do tempo nas narrativas históricas dos livros didáticos. Encontrei nos filmes o meio para promover o desenvolvimento dessa competência.

Bem, nesse ponto vou encerrando o resumo, pois mais à frente irei relatar como essas atividades estão sendo desenvolvidas. Meu interesse aqui, creio que ficou claro, foi prestar um tributo a trajetória dessa caminhada, que contou com o apoio de muitos professores e gestores do CEJA Joaquim Gomes Basílio, a quem agradeço enfaticamente. Entretanto, antes de dar continuidade ao CineHistória na EJA, o próximo texto continuará essa “retrospectiva”, pois, paralelamente à Educação de Adultos, também coordenava o CineHistória em uma escola da rede municipal de Ensino de Brejo Santo, cidade onde resido. Imagino que o trabalho desenvolvido lá também mereça o compartilhamento, e por mais que sejam modalidades distintas e públicos com idades bem diferentes, não há dúvida que, em muitos casos, pude perceber um forte diálogo entre essas duas realidades. Pois muitas dificuldades apresentadas pelo aluno da EJA, certamente nasceram no seu passado escolar, o que causou uma forte sensação de multiplicidade temporal.

Até a próxima!

Comentários